quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

Jornal Folha de São Paulo - Na prática, ministros do STF agridem a democracia, escreve professor da USP

Na prática, ministros do STF agridem a democracia, escreve professor da USP



Ilustração de João Montanaro para a capa da 'Ilustríssima'

RESUMO Professor de direito constitucional da USP faz duras críticas ao STF. Afirma que a corte, numa espiral de autodegradação, passou de poder moderador a poder tensionador, que multiplica incertezas e acirra conflitos. Explicações para isso se encontram na atuação dos ministros e no desarranjo de ritos e procedimentos.
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O Supremo Tribunal Federal é protagonista de uma democracia em desencanto. Os lances mais sintomáticos da recente degeneração da política brasileira passam por ali. A corte está em dívida com muitas perguntas, novas e velhas, e vale lembrar algumas delas antes que os tribunais voltem do descanso anual nos próximos dias.
Se Delcídio do Amaral (PT-MS), Eduardo Cunha (MDB-RJ), Renan Calheiros (MDB-AL) e Aécio Neves (PSDB-MG) detinham as mesmas prerrogativas parlamentares, por que, diante das evidências de crime, receberam tratamento diverso?
Se houve desvio de finalidade no ato da presidente Dilma Rousseff (PT) em nomear Lula (PT) como ministro, por que não teria havido o mesmo na conversão, pelo presidente Michel Temer (MDB), de Moreira Franco (MDB) em ministro?
Se o STF autorizou a prisão após condenação em segunda instância, por que ministros continuam a conceder habeas corpus contra a orientação do plenário, como se o precedente não existisse?
Se a restrição ao foro privilegiado já tem oito votos favoráveis, pode um ministro pedir vista sob alegação de que o Congresso se manifestará a respeito? Pode ignorar o prazo para devolução do processo?
Se lá chegam tantos casos centrais da agenda do país, como pode um magistrado, sozinho, manipular a pauta pública ao seu sabor (por meio de pedidos de vista, de liminares engavetadas etc.)?
Se o auxílio-moradia para juízes, criado em 2014, custa ao país mais de R$ 1 bilhão por ano, como pôde um ministro impedir que o plenário se manifestasse até aqui? Se a criminalização do porte de drogas responde por grande parte do encarceramento em massa brasileiro, como pode um pedido de vista interromper, por anos, um caso que atenuaria o colapso humanitário das prisões?
Se um ministro afirma que Ricardo Lewandowski "não passa na prova dos 9 do jardim de infância do direito constitucional", que Luís Roberto Barroso tem moral "muito baixinha", que Marco Aurélio é "velhaco", que Luiz Fux inventou o "AI-5 do Judiciário", que Rodrigo Janot é "delinquente" e que Deltan Dallagnol é "cretino absoluto", e além disso tem amigos espalhados entre o empresariado e a classe política julgados pelo STF, como expressará isenção nesses casos?
Se a Lei Orgânica da Magistratura proíbe juízes de se manifestarem sobre casos da pauta, como podem ministros antecipar posições a todo momento nos jornais?
A lista de perguntas poderia seguir, mas já basta para notar o que importa: as respostas terão menos relação com o direito e com a Constituição do que com inclinações políticas, fidelidades corporativistas, afinidades afetivas e autointeresse.
O fio narrativo, portanto, pede a arte de um romancista, não a análise de um jurista. Ao se prestar a folhetim político, o STF abdica de seu papel constitucional e ataca o projeto de democracia.
CHOQUE DE REALIDADE
A separação de Poderes conferiu lugar peculiar ao Supremo. O Parlamento é eleito, o STF não. O parlamentar pode ser cobrado e punido por seus eleitores, os ministros do STF não. O presidente da República é eleito e costuma ser o primeiro alvo das ruas, os membros do STF estão longe disso. A corte suprema tem o poder de revogar decisões de representantes eleitos.
É um tribunal que se autorregula e não responde a ninguém. O que justifica tanto poder e a imunização contra canais democráticos de controle?
Há boas respostas teóricas para esse arranjo. Para alguns, a integridade constitucional depende de um órgão capaz de pairar acima dos conflitos partidários, praticar a imparcialidade e assumir o papel de poder moderador. Para outros, mais do que apenas moderar, caberia ao tribunal inspirar respeito por seus argumentos jurídicos, que tecem padrões decisórios e constroem jurisprudência.
A autoimagem construída pelo STF foi ainda mais longe. Apresentou-se como a última trincheira dos cidadãos, incumbido da missão de salvar a democracia de si mesma, domesticar maiorias, amparar e incluir minorias.
No ápice da automistificação, o ministro Barroso imaginou a corte como "vanguarda iluminista que empurre a história" na direção do progresso moral e civilizatório (Vinicius Mota descreveu a ideia no dia 14/1).
A crise política e a erosão de direitos dos últimos anos trouxeram ao Supremo a oportunidade (e o ônus) de atender a suas promessas. A resposta, porém, foi um choque de realidade.
O desarranjo procedimental cobrou seu preço. Despreparado para a magnitude do desafio, o tribunal reagiu da forma lotérica e volátil de sempre. A prática do STF ridiculariza aquele autorretrato heroico, frustra as mais modestas expectativas e corrói sua pretensão de legitimidade.
Por não conseguir encarnar o papel de árbitro, o tribunal tornou-se partícipe da crise. Já não é mais visto como aplicador equidistante do direito, mas como adversário ou parceiro de atores políticos diversos. Desse caminho é difícil voltar.
Atado a uma espiral de autodegradação, o poder moderador converteu-se em poder tensionador, que multiplica incertezas e acirra conflitos. O ator que deveria apagar incêndios fez-se incendiário. Não foi vítima da conjuntura, mas da própria inépcia. A vanguarda iluminista na aspiração descobriu-se vanguarda ilusionista na ação (e na inação).
ILUSIONISMO
Como opera esse poder tensionador? Para decifrar a vanguarda ilusionista, precisamos olhar para além do resultado de cada decisão (se prende ou solta, se anula ou valida). Deve-se prestar mais atenção ao procedimento que gerou tal resultado e ao argumento que o justifica. É no procedimento e no argumento que mora o ilusionismo.
A síntese do desgoverno procedimental do STF está em duas regras não escritas: quando um não quer, 11 não decidem; quando um quer, decide sozinho por liminar e sujeita o tribunal ao seu juízo de oportunidade. Praticam obstrução passiva no primeiro caso, e obstrução ativa no segundo.
A contradição entre as duas regras é só aparente, pois a arte do ilusionismo permite sua coexistência. Manda a lógica do "cada um por si", nas palavras de editorial da Folha (24/12).
O argumento constitucional do Supremo já não vale o quanto pesa e tornou-se embrulho opaco para escolhas de ocasião. Basta olhar com lupa as incoerências na fundamentação de casos juridicamente semelhantes que recebem decisão diversa.
A expressão "jurisprudência do STF" sobrevive como licença poética, pois perdeu capacidade de descrever ou nortear a prática decisória do tribunal. Perdeu dignidade conceitual e até mesmo retórica.
No âmbito da esfera pública, o ilusionismo serve para desviar a atenção, responder o que não se perguntou, jogar fumaça na controvérsia e confundir o interlocutor.
O ministro Gilmar Mendes, por exemplo, é praticante rotineiro dessa técnica. Publicou nesta Folha (17/1) artigo em defesa do habeas corpus (HC). Invoca o direito abstrato à liberdade, do qual ninguém discordará, e se desvia das críticas contra suas decisões recentes.
As críticas às quais Mendes reage nunca miraram o HC em si, mas as evidências de suspeição para julgar, de forma monocrática, pessoas do seu círculo pessoal e político. O ministro se apresenta como defensor da liberdade, mas suas decisões passam a impressão de ser defensor dos amigos. Para dissipar essa impressão, basta que se declare suspeito —o que se recusa a fazer.
Manha ilusionista: discursar sobre o ideal revolucionário da liberdade e silenciar sobre a liberdade concedida a amigos indiciados.
OUTROS TEXTOS DESTA EDIÇÃO
O ilusionismo, nas suas faces procedimental e argumentativa, retira das decisões do STF o selo de integridade institucional.
Por essa razão, tem sido pouco útil aos advogados e analistas da corte perguntar se o texto da Constituição é lido de modo apropriado, se nossas categorias de análise dão conta da tarefa interpretativa e se o tribunal pratica ativismo ou deferência —questões nobres do debate constitucional.
Mais importante é conhecer a biografia do ministro e sua capacidade de atender a ética da imparcialidade, da responsabilidade e da colegialidade.
A ambição do Estado de Direito é produzir um "governo das leis, não dos homens". Soa como slogan a serviço da distorção ideológica, mas o sentido da expressão não tem nada de esotérico.
A mensagem é mais modesta: não quer dizer que o aparato institucional de interpretação e aplicação das leis deva ser composto por sujeitos sobre-humanos, imunes a afetos e interesses, mas apenas que esses sujeitos devem ter compromisso ético para decidir com maior isenção e ponderação analítica, além de gozar de garantias contra a pressão da barganha política. Não requer muito mais que isso.
A prática do STF pede adaptação daquela máxima: a interpretação constitucional deve estar submetida ao "governo do Supremo, não dos ministros". O tribunal, porém, tem sido governado pelo voluntarismo incontinente de seus membros. É muito poder individual de fato (e de legalidade duvidosa) para ser usado com tanta extravagância.
Como disse José Sarney, anos atrás, "um dos maiores desserviços ao país é desprestigiar o Supremo Tribunal Federal". Esse desserviço ao STF vem sendo prestado pelos seus próprios membros. Isso traz consequências.
ARBÍTRIO
O tempo do STF é místico. A corte pode tomar uma decisão em 20 horas ou em 20 anos (como publicou Ivar Hartmann, neste mesmo caderno, em 28/5 de 2017). A duração de um caso não guarda nenhuma relação com sua complexidade jurídica, sua importância política ou o excesso de trabalho do tribunal —alegações usuais de ministros.
É fruto, sim, da idiossincrasia e do instinto de cada julgador. E, às vezes, de negociações nos bastidores palacianos e corporativos.
Ninguém melhor que o ex-deputado Eduardo Cunha para iluminar o problema. Quando afastado de seu mandato pelo STF em 2016, ironizou com a pergunta cínica que muitos se fizeram: "Se havia urgência, por que levou seis meses?" Em outras palavras: por que agora?
Uma ótima questão, que poderia ser aplicada a muitos casos (por exemplo, o pacote natalino de liminares, todas monocráticas e abruptas, tomadas no apagar das luzes de 2017, antes de o Judiciário sair de férias).
Lewandowski, presidente da corte em 2016, desconversou: "O tempo do Judiciário não é o tempo da política e nem é o tempo da mídia. Temos ritos, procedimentos e prazos que devemos observar".
A resposta é mais um artefato ilusionista. Quando diz que o tempo do Judiciário não é o tempo da política nem o da mídia, recorre a um árido lugar-comum para se esquivar do que se queria saber. A resposta também ignora a inteligência empírica que vem sendo construída ao longo dos último anos sobre o STF por um crescente grupo de estudiosos da corte.
A definição arbitrária do seu tempo decisório é mais uma faculdade que o Supremo conferiu a si mesmo e não explicou a ninguém, um dos poderes mais antidemocráticos que um tribunal pode ter.
INSEGURANÇA
Pede-se a tribunais que produzam segurança jurídica e previsibilidade. Esse fim costuma ser entendido apenas como demanda de conteúdo: que pudéssemos estimar, com algum grau de certeza, à luz das decisões passadas da corte, o que decidirá em casos semelhantes no futuro.
Não é um objetivo possível de realizar por completo, pois muitos casos, apesar de sua similaridade de superfície, suscitam variações interpretativas genuínas.
Ainda que frustre expectativas, é desejável que a jurisprudência tenha um grau de elasticidade. Mas existe uma faceta mais básica da segurança jurídica: a expectativa de que tomará uma decisão em tempo razoável ou sabido. Trata-se de previsibilidade de segunda ordem.
O STF, no entanto, não só tirou a credibilidade da noção de jurisprudência como também nos sonega a possibilidade de saber quando uma decisão será tomada. Em certos casos, não estamos seguros sequer de que haverá decisão, qualquer que ela seja.
Se o STF passasse a observar, de modo criterioso e transparente, "ritos, procedimentos e prazos", como quis Lewandowski, já seria um gesto quase revolucionário.
Entretanto, a loteria de agenda, somada ao seu oceano de casos, prejudica a construção de uma esfera pública constitucional, de um espaço em que debates democráticos possam se desenvolver, que atores interessados possam mobilizar energia e recursos para participar. Esperam apenas que seus argumentos sejam respondidos e uma decisão seja tomada em tempo publicamente justificado.
Vale a pena observar outras cortes no mundo. Ainda que a comparação tenha limites, pois cada tribunal tem seu próprio desenho, volume de casos e contexto, mostraria, por exemplo, que a discricionariedade com o tempo não é exclusividade do Supremo.
Nem todo tribunal tem a disciplina com o tempo que possuem a Suprema Corte dos Estados Unidos ou a Corte Constitucional da África do Sul. Como ambas decidem poucas dezenas de casos por ano, a tarefa fica menos difícil.
Se olharmos para as cortes espanhola ou mexicana, alemã ou argentina, indiana ou chilena, veremos um mapa muito plural de gestão do procedimento, com problemas particulares. Em nenhuma delas, porém, se consegue encontrar tamanha libertinagem de obstrução individual de ministros.
PERDA DO RESPEITO
Um bom observador do comportamento judicial aprende depressa que "cortes não fazem o que dizem e nem dizem o que fazem". Pelo menos parte do tempo.
Essa máxima é ainda mais certeira quando aplicada a um tribunal de cúpula, que precisa administrar dinamites da democracia. A crônica constitucional só perde a inocência quando está apta a detectar a dissonância entre as palavras e os atos de instituição ainda tão obscura quanto o Judiciário.
Um bom observador do Supremo Tribunal Federal também aprende que o Supremo Tribunal Federal não existe. Pelo menos na maior parte do tempo.
Tornou-se um tribunal de 11 bocas e 11 canetas dotadas de poder para, sozinhas, tomar decisões (ou não decisões) que geram efeitos irreversíveis. A crônica constitucional brasileira vem captando essa lição à medida que a cacofonia do STF fica mais escancarada, e seus custos sociais, mais palpáveis.
O tribunal foi capturado por ministros que superestimam sua capacidade de serem levados a sério e subestimam a fragilidade da corte.
Decidem (ou deixam de decidir) o que querem, quando querem, sozinhos ou em plenário; falam o que querem e quando querem, não só nos autos e nas sessões públicas de julgamento mas também nos microfones de jornalistas.
Ausentam-se das sessões do tribunal sob pretextos pouco contestados (um congresso acadêmico ou casamento de amigo no exterior, uma honraria oferecida por câmara de vereadores de município remoto, a irritação com voto de colega etc.).
Administram terrivelmente a dimensão simbólica (fonte de autoridade) e deixam esvair a dimensão material do poder do tribunal (a capacidade de ser obedecido). Um STF sem capital político pode ser desobedecido sem custos.
Que tenhamos perdido a reverência pelo STF é um ganho de maturidade política. Que estejamos perdendo o respeito é um perigo que o tribunal criou para si mesmo.
Maquiavel sugeriu, em "O Príncipe", que um governante não deve buscar ser amado, mas respeitado. Se não for respeitado, que ao menos não seja desprezado, sentimento político mais nocivo. Um governante torna-se desprezível quando é "inconstante, leviano, irresoluto".
O conselho serve para as instituições democráticas, sobretudo tribunais constitucionais. O STF precisa de anti-heróis, não do contrário. Sua sobrevivência como instituição relevante tem a ver com isso.
Às vésperas dos 30 anos da Constituição de 1988, temos um tribunal constitucional desencontrado. O STF promete mais do que deve, entrega menos do que pode, disfarça o tanto quanto consegue.
Habituou-se à prática do ilusionismo e dela faz pouco caso. Criou uma espécie de zona franca da Constituição, onde reina a discricionariedade de conjuntura e aonde o Estado de Direito não chega.
E não chega por obra dos próprios ministros e ministras, que não promoveram um único aperfeiçoamento digno de nota na última década: nem na forma, nem no conteúdo; nem nos ritos, nem na ética institucional.
Não sabem conjugar a primeira pessoa do plural. Mediocrizaram a tarefa de interpretação constitucional e a própria instituição, cujo status se evapora. Com ele vai a esperança de efetividade da Constituição, a mais avançada que já tivemos.
*
CONRADO HÜBNER MENDES, 40, doutor em direito pela Universidade de Edimburgo e doutor em ciência política pela USP, é professor de direito constitucional da USP e embaixador científico da Fundação Alexander von Humboldt.
JOÃO MONTANARO, 21, é quadrinista.

domingo, 7 de janeiro de 2018

Morre Carlos Cony (tirado do site do O GLOBO)

Morre o escritor e jornalista Carlos Heitor Cony

Membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), Cony estava internado no Hospital Samaritano, na Zona Sul

POR 
Carlos Heitor Cony em entrevista ao GLOBO, em 2016 - Ana Branco / Agência O Globo
RIO - O escritor e jornalista Carlos Heitor Cony morreu na noite de sexta-feira, aos 91 anos, por volta das 23h. A causa da morte não foi confirmada. Membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), ele deixa a viúva Beatriz Lajta e três filhos: Regina, Verônica e André. Cony estava internado no Hospital Samaritano, na Zona Sul do Rio. Os familiares ainda não definiram a data e o local do velório e do enterro. 
Cony foi o quinto ocupante da cadeira numero 3 da ABL, para a qual foi eleito em março de 2000, sucedendo Herberto Sales. Em sua carreira como escritor, ele recebeu diversas honrarias. Conquistou o Prêmio Jabuti em 1996 pelo romance "Quase memória". Voltou a vencer o prêmio no ano seguinte, por "A casa do poeta trágico", e em 2000, por "Romance sem palavras". Também recebeu o Prêmio Machado de Assis, da ABL, pelo conjunto da obra em 1996. Em 1998, recebeu do governo francês a Ordre des Arts et des Lettres. Já como jornalista, iniciou a carreira em 1952, no "Jornal do Brasil" e passou por outras publicações importantes, como "Correio da Manhã" e "Manchete". Atualmente Cony era colunista da "Folha de S. Paulo" e comentarista da rádio CBN.
PALAVRAS SECAS E CETICISMO IRÔNICO
"Só creio naquilo que possa ser atingido pelo meu cuspe”, diz a certa altura o protagonista do romance de estreia de Carlos Heitor Cony, “O ventre” (1958). Aos 32 anos, Cony resumiu nessa frase o ceticismo irônico que o acompanhou por toda a vida. Na juventude, estudou para ser padre, mas abandonou o seminário. Durante a ditadura, como jornalista, escreveu contra o autoritarismo, foi perseguido pelo regime, mas não se furtou a criticar dogmas de esquerda, e por isso foi acusado de alienado. Em seus romances, expressou com uma linguagem seca e por vezes sarcástica suas dúvidas e desencantos sobre a sociedade brasileira e a condição humana.
Cony durante posse na Academia Brasileira de Letras - Ana Branco / Agência O Globo
Nascido em 14 de março de 1926, em Lins de Vasconcelos, subúrbio carioca, Carlos Heitor Cony foi uma criança de poucas palavras. Filho do jornalista e funcionário público Ernesto Cony Filho e Julieta de Moraes Cony, tinha um problema de dicção que o impediu de frequentar a escola regular e aprendeu a ler e escrever com o pai. Aos 11 anos, depois da primeira comunhão na Igreja Matriz de Nossa Senhora da Guia, em Mangaratiba, Cony começou a frequentar o Seminário de São José, no Rio Comprido. Dois anos depois, iniciou a carreira de seminarista.
A experiência no seminário o marcou para toda a vida. Em entrevista à revista “IstoÉ”, em 1993, afirmou que “a única coisa que eu realmente quis na vida foi ser padre”. O ceticismo, porém, o impediu. O São José foi a grande escola de formação intelectual do escritor. Lá estudou latim, português, grego, francês, italiano, música, matemática, filosofia, psicologia, ética e até cosmologia. Devorador de livros e crítico implacável, definiu assim o abandono da formação para o sacerdócio: “Comecei a duvidar de tudo. Comecei a preferir Santo Agostinho a São Tomás de Aquino. Foi um ponto de atrito, porque toda a filosofia dos seminários, hoje (na época), é tomista. Eu tinha muito mais interesse pessoal na figura de Santo Agostinho, com aquele passado devasso, do que na filosofia angélica. Eu não achava nenhuma graça nele”.
Um ano depois de largar o seminário, em 1946, Cony se inscreveu no curso de Letras Neolatinas da Faculdade Nacional de Filosofia, mas não chegou a concluí-lo. No mesmo ano, começou a colaborar para a imprensa, ajudando o pai no “Jornal do Brasil”. Em 1947, recebeu sua primeira carteira de jornalista como redator da Gazeta de Notícias. Mas sua carreira começaria para valer cinco anos depois, na Rádio Jornal do Brasil. Contudo, não acompanhou o colega Reynaldo Jardim na mudança para o jornal. Jardim, junto com Jânio de Freitas e Odylo Costa, filho foram as cabeças por trás da revolucionária reforma gráfica e editoral do diário, no final dos anos 1950.
Carlos Heitor Cony com o seu cachorro da raça Setter Irlandês, em 1996 - Gustavo Stephan / Agência O Globo
Na época, Cony estava decidido a ser escritor. E foi um dos mais prolíficos. Entre 1955 e 1972, publicou nove romances em sequência. O primeiro, “O ventre”, foi inscrito no concurso de literatura patrocinado pela Secretaria de Educação e Cultura em associação com a Academia Brasileira de Letras (ABL). Apesar de ser apontado como o melhor romance, teve negado o Prêmio Manuel Antônio de Almeida por sua visão pessimista e sua linguagem rude. Em apenas nove dias, escreveu “A verdade de cada dia”, inscreveu-se novamente e ganhou o prêmio, em 1956, sob o pseudônimo Isaías Caminha, referência ao escrivão de Lima Barreto. No ano seguinte, venceu novamente o concurso com “Tijolo de segurança”. “Eu não fui o jornalista que se transformou em escritor, fui um escritor que se transformou em jornalista”, disse.
Em 1961, entrou no “Correio da Manhã” e lançou “Informação ao crucificado”, romance em forma de diário sobre um jovem seminarista em crise existencial. Um ano depois, deu início à coluna “Da arte de falar mal” e publicou “Matéria de memória”. Em 1964, mais uma ficção sua é editada, “Antes, o verão”. Considerado pouco politizado por seu pares, antes e depois do golpe militar, Cony foi atacado tanto pela direita quanto pela esquerda, que cobrava engajamento partidário. Ele respondeu em uma de suas crônicas: “Sou inteligente o bastante para não ser de direita, mas muito rebelde para ser de esquerda”. Em outro texto da época, disparou: “No dia em que me der na telha, pegarei no fuzil — e, ainda que não saiba manejá-lo, saberei contra que lado atirar”. 
Em seus textos, até 1964, Cony não abordava a política com frequência. Também por isso tentavam rotulá-lo de “alienado”. E o escritor provocava: certa vez, disse que largou no meio o filme “Vidas secas” (1963), de Nelson Pereira dos Santos, porque se sentia entendiado ante a visão de uma vaca. Contudo, foi uma das primeiras vozes a se levantar contra o regime militar, com a coluna intitulada “Da salvação da pátria”, em 2 de abril de 1964, apesar da posição de amplo apoio do “Correio da Manhã” ao golpe. Um de seus textos mais duros, “A revolução dos caranguejos”, rendeu ameaças anônimas contra suas filhas e uma operação policial na sua casa, em Copacabana. As crônicas do período foram reunidas no livro “O ato e o fato”, cuja primeira edição foi um sucesso de vendas e esgotou em poucas semanas.
Durante a ditadura, Cony foi preso seis vezes e também enquadrado na Lei de Segurança Nacional pelo então ministro da Guerra, General Costa e Silva (que mais tarde se tornaria presidente). O maior período de detenção foi após a decretação do AI-5, em 1968. A situação ficara insustentável. Cony aproveitou um convite para ser jurado do prêmio Casa de las Americas e viveu quase um ano em Havana. Retornou ao Brasil para assumir um cargo no grupo “Manchete”, a convite de Adolpho Bloch.
“(Adolpho) me ofereceu condições que eu gosto: bom salário, bom ambiente de trabalho. Não me pediu nada em matéria de compromisso ideológico, a não ser que eu compreendesse o desenho da casa. Ofereceu-me, em última análise, uma prisão confortável, com mordomia, podendo viajar e coisa e tal. Prisão por prisão, era melhor que o Batalhão de Guardas”, afirmou em entrevista a revista “Imprensa”, em 1993. Foram mais de 20 anos na Bloch Editores, onde dirigiu as revistas “Ele & Ela” e “Desfile”, além de participar da redação da “Manchete”, onde também foi editor e na qual voltou a publicar crônicas que, apesar dos anos de chumbo, eram plenas de alusões simbólicas à ditadura.
Em 1974, publicou aquele que pretendia que fosse seu último romance, “Pilatos”. Antes, lançara “Balé branco” (1966) e “Pessach: A travessia” (1967), com duras críticas ao Partido Comunista Brasileiro, o que lhe rendeu um boicote do Partidão, além de “Quem matou Vargas”, publicado em capítulos na revista “Manchete”. No entanto, nenhum alcançaria a repercussão de “Pilatos”. “Considero este meu romance definitivo. Depois dele, não tinha mais nada a fazer”, disse em entrevista a “Folha de S. Paulo”, em setembro de 2012.
Mas Cony voltou a publicar um livro, por um motivo que pode ter surpreendido os que viam apenas como um cético. No início dos anos 1990, sua cadela Mila ficou doente e ele voltou a escrever “para suportar o sofrimento de ouvir seus gemidos”, como disse ao GLOBO em 2012. O resultado foi “Quase memória”, mescla de ficção e autobiografia em que o narrador parte da descoberta de um envelope com a letra do pai, morto havia dez anos, para fazer uma revisão lírica e afetuosa do passado.
Lançado em 1995, o livro se tornou um grande sucesso, vendendo mais de 400 mil exemplares, e foi adaptado para o cinema em 2015, pelo diretor Ruy Guerra. Cony o definia como “um desabafo” e relegava os romances que publicou depois a um lugar secundário em sua obra, mero resultado de “pressões comerciais”. Mas muitos leitores e críticos saudaram livros como “O piano e a orquestra” (1996), “A casa do poeta trágico” (1997) ou “A tarde da tua ausência” (2003), que colecionaram prêmios. “Quase memória” e “O piano e a orquestra” venceram o Prêmio Jabuti, assim como “Romance sem palavras”, em 2000. Em 1996, Cony também recebeu o Prêmio Machado de Assis, da ABL, pelo conjunto da obra. O último romance do autor, "A morte e a vida" (2007), abordou o polêmico tema da eutanásia.
Enquanto retomava a carreira de romancista, continuava na imprensa. Na década de 1990, após deixar a Bloch, Cony voltou a colaborar com a “Folha”, numa coluna que manteve ativa até a sua morte. Em 2000, foi eleito para a ABL, na vaga de Herberto Sales. Mas várias vezes direcionou sua ironia seca à instituição, que em entrevista recente ao GLOBO chamou de “jardim de infância às avessas”: “No jardim de infância você não tem passado mas um futuro o espera, com relações novas e amigos vindouros. Na academia, não temos futuro. Temos todos um passado, se é que temos, bom, brilhante ou medíocre”. 
Em 2004, o escritor foi muito criticado ao ter aprovado o seu direito a uma pensão vitalícia de R$ 23 mil (valores da época) como compensação à sua demissão do “Correio da Manhã”, em 1965, por críticas ao regime militar. Em um texto no site “Observatório da Imprensa”, Cony rebateu dizendo que apresentou um dossiê de mais de 100 páginas para comprovar a perseguição sofrida e que, se estivesse a cargo do postulante decidir o valor, “teria pedido quantia maior”.