quinta-feira, 3 de janeiro de 2019

O sapo de Arubinha (crônica de Mario Filho)


O sapo de Arubinha” (crônica de MARIO FILHO)

Ainda não foi contada direito a história do sapo de Arubinha. Pode ser, até, que Arubinha não tenha enterrado nenhum sapo em São Januário. O nome, porém, de qualquer história que se contar a respeito da praga dos doze anos terá de ter o título de “O sapo de Arubinha”. Todo mundo sabe logo do que se trata. Arubinha, depois de um match, rogou uma praga: “Se há um Deus no céu, o Vasco tem de passar doze anos sem ser campeão”. Por que doze anos? 12 x 0 era o placar, Vasco 12, Andaraí 0. Arubinha, quando se ajoelhou, juntou as mãos e olhou para o céu, tudo escuro lá em cima, nenhuma estrela, e a chuva caindo sem parar, tinha o doze na cabeça. Se o Vasco tivesse marcado dez, seria dez, se tivesse marcado oito, seria oito. Só um escore pequeno, de 1 x 0, de dois, de 3 x 0, no máximo, livraria o Vasco da praga do Arubinha.
O ano estava acabando, era 30 de dezembro, uma quarta-feira. Começou a chover cedo. A chuva foi pela tarde adentro, continuou pela noite afora.
Ninguém pensou em transferir o jogo Vasco x Andaraí. Jogo assim, sem importância — quem não sabia que o Vasco ia vencer longe? —, não se transfere. O Andaraí alugou uns carros, saiu com o time da praça Sete, foi bater no Fluminense. Quando eram nove horas da noite, Haroldo Dias da Motta, o juiz, apareceu em campo, de calças arregaçadas, pi-piu, pi-piu. O Laúza não teve dúvidas. Quanto mais cedo os times entrassem em campo, melhor. Os jogadores do Andaraí vieram correndo, fizeram a volta do campo, levantaram hurras para as arquibancadas vazias.
K toca a esperar pelo Vasco. Haroldo Dias da Motta apitou com mais força, talvez os jogadores do Vasco não tivessem escutado. Pi-piu, pi-piu, e nada do Vasco, e o time do Andaraí apanhando chuva. Dava pena ver, no meio do campo cheio de poças d’água, o juiz, os bandeirinhas, os jogadores do Andaraí, todos de braços cruzados sobre o peito, encolhidos. Um torcedor de guarda-chuva aberto gritou, lá do alto da geral: “Está na hora, bota o bacalhau para fora!”. Haroldo Dias da Motta chamou o Vasco mais uma, mais duas vezes. A porta do vestiário do Vasco eslava aberta. De lá, porém, não saiu nenhum jogador. “Seu juiz”, e o Dondom descruzou as mãos do peito, “a gente vai ficar apanhando chuva aqui toda a vida?”
Haroldo Dias da Motta deu um pulo até o vestiário do Vasco. Pedro Novais andava de um lado para o outro, de quando em quando parava, olhava para Welfare. “E o time, mister?” Rubem Esposei respondeu: “Telefonei, o time saiu há bastante tempo, já devia estar aqui”. Pedro Novais viu Haroldo Dias da Motta, agarrou-se a ele: “Tenha um pouco de paciência, Haroldo. O time está chegando. E só mais um instantinho”. Haroldo Dias da Motta voltou para o meio de campo. “O time do Vasco não chegou ainda.” “E o que é que a gente vai fazer, seu juiz?”, perguntou o Dondom. “Isso é com vocês”, respondeu Haroldo Dias da Motta. “Vocês podem ir lá para dentro mudar de roupa e esperar. E podem também pedir que eu comece a contar os quinze minutos.”
Se o Vasco não aparecesse em quinze minutos perderia os pontos, não haveria mais jogo. A tentação era forte, Dondom saiu correndo, o Laúza veio ao encontro dele: “Que é que há?” “O juiz quer saber se começa ou não começa a contar os quinze minutos.” O Vasco não tinha chegado ainda, talvez demorasse mais de quinze minutos para chegar, se demorasse, o Andaraí ganharia os dois pontinhos da tabela. “Espere um pouco que eu já volto”, disse o Laúza. Consulta daqui, consulta dali, uns achavam que se devia aproveitar, outros achavam que o Vasco não merecia uma coisa daquelas. Parecia que o Vasco tinha adivinhado. Rubem Esposel apareceu no vestiário do Andaraí com a novidade: uma porção de jogadores do Vasco estava no pronto-socorro. Houvera um desastre.
Os carros tinham saído cedo de São Januário. Na esquina de Figueira de Melo com Francisco Eugênio, apareceu um caminhão da limpeza pública e pegou um dos carros cheio de jogadores do Vasco. Parecia que havia feridos graves. Oscarino fora para o raio X, estava com uma costela partida. Também Rey não podia jogar, nem Rey, nem Mamede, nem Cuco. “Os outros jogadores já partiram do pronto-socorro para aqui.”
A hesitação de Laúza desapareceu: o Andaraí esperaria pelo time do Vasco. “O Andaraí sabe que vai perder” — o Laúza tornou-se loquaz —, “mas não faz questão de pontos. Faz questão é da amizade do Vasco.”
O Arubinha meteu-se na conversa. “Eu só peço uma coisa: que o Vasco não abuse.” Abusar de quê? Do escore. O Andaraí já ia perder, e ficava apanhando chuva, esperando pelo Vasco. “Se o Vasco vencer”, disse Rubem Esposel, “será por um escore pequeno.” Não era brincadeira, um desastre daqueles na hora do jogo. Os jogadores do Vasco iam entrar em campo abalados. Talvez não aguentassem, quem devia pedir por um pouco de consideração era o Vasco, não era o Andaraí. Eu só sei que não se falou mais em quinze minutos, no meio do campo os jogadores do Andaraí continuaram esperando e apanhando chuva.
Finalmente o Vasco apareceu. Entrou em campo, pediu pressa a Haroldo Dias da Motta. Mal o jogo começou, o Vasco deu para fazer gols. Nem parecia que tinha havido desastre. Pelo contrário: 1x0, dois, três, quatro, 5x0.
Acabou o primeiro tempo, o Andaraí com a esperança de que o Vasco, garantida a vitória, não quisesse mais saber de gols. 5 x 0 já era um escore grande, bastava. A chuva não parou de cair. Nem a chuva de cair, nem o Vasco de fazer gols. No segundo tempo marcou ainda mais do que no primeiro. Seis, sete, oito, nove, dez, onze, 12 x 0. Um número bonito, de uma dúzia. Só aí o Vasco sossegou.
Também, quando o jogo acabou, Arubinha ajoelhou-se, juntou as mãos, olhou para cima. Lá em cima estava o céu, devia estar Deus também. Arubinha não via o céu, não via Deus. Assim mesmo pediu, alto, bem alto, para que Deus escutasse: “Se há um Deus no céu, o Vasco tem de passar doze anos sem ser campeão.” Uns dizem que Arubinha não se contentou com isso. Que um dia foi a São Januário e enterrou um sapo no campo do Vasco. Aliás quem o levou para São Januário foi o próprio Vasco. O Vasco soubera da praga de Arubinha, ficou assustado, só o Arubinha podia desfazer a praga.
Não desfez. Os anos começaram a passar e o Vasco nada de ser campeão. Era o sapo, não podia ser outra coisa. O Vasco mandou revolver o campo, procurou-se uma múmia de sapo por todo canto, não se encontrou sapo algum.
Vascaínos meteram a mão no bolso para o Arubinha contar onde tinha enterrado o sapo. O Arubinha disse que não tinha enterrado sapo algum. Estava falando a verdade? Era o que não se sabia. Tudo indicava que ele tinha enterrado mesmo um sapo em São Januário. O Vasco organizava um escrete, gastava um dinheirão com o time, aliás timaço. Parecia que com praga, sapo e tudo, ia ser campeão e não era, não havia jeito de ser. E o pior era a dúvida. Se fosse a praga, o Vasco teria de esperar doze anos para ser campeão. Mas a praga começava a contar de 37, quando Arubinha rogara a praga, ou de 34, quando o Vasco fora campeão pela última vez?
O Vasco até se esqueceu, e de propósito, do campeonato de 36, que ganhou fora da Liga Carioca, onde jogavam Fluminense, Flamengo e América. E a Federação Metropolitana, que tinha o Vasco, o Botafogo, o Bangu e o São Cristóvão, era a entidade oficial.
Mas se fosse contar com o campeonato de 36, o da Federação Metropolitana, o Vasco teria de esperar mais, talvez só fosse campeão em 48. Por isso, todo vascaíno torceu para que a praga vigorasse a partir de 34. O Vasco só voltou a ser campeão em 45, onze anos depois.
Há sempre um desconto nessas pragas. O Botafogo sofreu por ter dado no Mangueira de 24 x 0. Mas não teve que esperar 24 anos para ser campeão de novo: esperou apenas vinte anos. Quer dizer que, se tivesse dado de quatro, nada lhe teria acontecido.

(Crônica tirada de “As Cem Melhores Crônicas Brasileiras” - Organização de Joaquim Ferreira dos Santos)

Nenhum comentário:

Postar um comentário