“O sapo de Arubinha” (crônica de MARIO
FILHO)
Ainda não foi contada direito a
história do sapo de Arubinha. Pode ser, até, que Arubinha não tenha enterrado
nenhum sapo em São Januário. O nome, porém, de qualquer história que se contar
a respeito da praga dos doze anos terá de ter o título de “O sapo de Arubinha”.
Todo mundo sabe logo do que se trata. Arubinha, depois de um match, rogou uma
praga: “Se há um Deus no céu, o Vasco tem de passar doze anos sem ser campeão”.
Por que doze anos? 12 x 0 era o placar, Vasco 12, Andaraí 0. Arubinha, quando
se ajoelhou, juntou as mãos e olhou para o céu, tudo escuro lá em cima, nenhuma
estrela, e a chuva caindo sem parar, tinha o doze na cabeça. Se o Vasco tivesse
marcado dez, seria dez, se tivesse marcado oito, seria oito. Só um escore
pequeno, de 1 x 0, de dois, de 3 x 0, no máximo, livraria o Vasco da praga do
Arubinha.
O ano estava acabando, era 30 de
dezembro, uma quarta-feira. Começou a chover cedo. A chuva foi pela tarde
adentro, continuou pela noite afora.
Ninguém pensou em transferir o
jogo Vasco x Andaraí. Jogo assim, sem importância — quem não sabia que o Vasco
ia vencer longe? —, não se transfere. O Andaraí alugou uns carros, saiu com o
time da praça Sete, foi bater no Fluminense. Quando eram nove horas da noite,
Haroldo Dias da Motta, o juiz, apareceu em campo, de calças arregaçadas,
pi-piu, pi-piu. O Laúza não teve dúvidas. Quanto mais cedo os times entrassem
em campo, melhor. Os jogadores do Andaraí vieram correndo, fizeram a volta do
campo, levantaram hurras para as arquibancadas vazias.
K toca a esperar pelo Vasco.
Haroldo Dias da Motta apitou com mais força, talvez os jogadores do Vasco não
tivessem escutado. Pi-piu, pi-piu, e nada do Vasco, e o time do Andaraí
apanhando chuva. Dava pena ver, no meio do campo cheio de poças d’água, o juiz,
os bandeirinhas, os jogadores do Andaraí, todos de braços cruzados sobre o
peito, encolhidos. Um torcedor de guarda-chuva aberto gritou, lá do alto da
geral: “Está na hora, bota o bacalhau para fora!”. Haroldo Dias da Motta chamou
o Vasco mais uma, mais duas vezes. A porta do vestiário do Vasco eslava aberta.
De lá, porém, não saiu nenhum jogador. “Seu juiz”, e o Dondom descruzou as mãos
do peito, “a gente vai ficar apanhando chuva aqui toda a vida?”
Haroldo Dias da Motta deu um pulo
até o vestiário do Vasco. Pedro Novais andava de um lado para o outro, de
quando em quando parava, olhava para Welfare. “E o time, mister?” Rubem Esposei
respondeu: “Telefonei, o time saiu há bastante tempo, já devia estar aqui”.
Pedro Novais viu Haroldo Dias da Motta, agarrou-se a ele: “Tenha um pouco de
paciência, Haroldo. O time está chegando. E só mais um instantinho”. Haroldo
Dias da Motta voltou para o meio de campo. “O time do Vasco não chegou ainda.”
“E o que é que a gente vai fazer, seu juiz?”, perguntou o Dondom. “Isso é com
vocês”, respondeu Haroldo Dias da Motta. “Vocês podem ir lá para dentro mudar
de roupa e esperar. E podem também pedir que eu comece a contar os quinze
minutos.”
Se o Vasco não aparecesse em
quinze minutos perderia os pontos, não haveria mais jogo. A tentação era forte,
Dondom saiu correndo, o Laúza veio ao encontro dele: “Que é que há?” “O juiz
quer saber se começa ou não começa a contar os quinze minutos.” O Vasco não
tinha chegado ainda, talvez demorasse mais de quinze minutos para chegar, se
demorasse, o Andaraí ganharia os dois pontinhos da tabela. “Espere um pouco que
eu já volto”, disse o Laúza. Consulta daqui, consulta dali, uns achavam que se
devia aproveitar, outros achavam que o Vasco não merecia uma coisa daquelas.
Parecia que o Vasco tinha adivinhado. Rubem Esposel apareceu no vestiário do
Andaraí com a novidade: uma porção de jogadores do Vasco estava no
pronto-socorro. Houvera um desastre.
Os carros tinham saído cedo de
São Januário. Na esquina de Figueira de Melo com Francisco Eugênio, apareceu um
caminhão da limpeza pública e pegou um dos carros cheio de jogadores do Vasco.
Parecia que havia feridos graves. Oscarino fora para o raio X, estava com uma costela
partida. Também Rey não podia jogar, nem Rey, nem Mamede, nem Cuco. “Os outros
jogadores já partiram do pronto-socorro para aqui.”
A hesitação de Laúza desapareceu:
o Andaraí esperaria pelo time do Vasco. “O Andaraí sabe que vai perder” — o
Laúza tornou-se loquaz —, “mas não faz questão de pontos. Faz questão é da
amizade do Vasco.”
O Arubinha meteu-se na conversa.
“Eu só peço uma coisa: que o Vasco não abuse.” Abusar de quê? Do escore. O
Andaraí já ia perder, e ficava apanhando chuva, esperando pelo Vasco. “Se o
Vasco vencer”, disse Rubem Esposel, “será por um escore pequeno.” Não era
brincadeira, um desastre daqueles na hora do jogo. Os jogadores do Vasco iam
entrar em campo abalados. Talvez não aguentassem, quem devia pedir por um pouco
de consideração era o Vasco, não era o Andaraí. Eu só sei que não se falou mais
em quinze minutos, no meio do campo os jogadores do Andaraí continuaram
esperando e apanhando chuva.
Finalmente o Vasco apareceu.
Entrou em campo, pediu pressa a Haroldo Dias da Motta. Mal o jogo começou, o
Vasco deu para fazer gols. Nem parecia que tinha havido desastre. Pelo
contrário: 1x0, dois, três, quatro, 5x0.
Acabou o primeiro tempo, o
Andaraí com a esperança de que o Vasco, garantida a vitória, não quisesse mais
saber de gols. 5 x 0 já era um escore grande, bastava. A chuva não parou de
cair. Nem a chuva de cair, nem o Vasco de fazer gols. No segundo tempo marcou
ainda mais do que no primeiro. Seis, sete, oito, nove, dez, onze, 12 x 0. Um
número bonito, de uma dúzia. Só aí o Vasco sossegou.
Também, quando o jogo acabou,
Arubinha ajoelhou-se, juntou as mãos, olhou para cima. Lá em cima estava o céu,
devia estar Deus também. Arubinha não via o céu, não via Deus. Assim mesmo
pediu, alto, bem alto, para que Deus escutasse: “Se há um Deus no céu, o Vasco
tem de passar doze anos sem ser campeão.” Uns dizem que Arubinha não se
contentou com isso. Que um dia foi a São Januário e enterrou um sapo no campo
do Vasco. Aliás quem o levou para São Januário foi o próprio Vasco. O Vasco
soubera da praga de Arubinha, ficou assustado, só o Arubinha podia desfazer a
praga.
Não desfez. Os anos começaram a
passar e o Vasco nada de ser campeão. Era o sapo, não podia ser outra coisa. O
Vasco mandou revolver o campo, procurou-se uma múmia de sapo por todo canto,
não se encontrou sapo algum.
Vascaínos meteram a mão no bolso
para o Arubinha contar onde tinha enterrado o sapo. O Arubinha disse que não
tinha enterrado sapo algum. Estava falando a verdade? Era o que não se sabia.
Tudo indicava que ele tinha enterrado mesmo um sapo em São Januário. O Vasco
organizava um escrete, gastava um dinheirão com o time, aliás timaço. Parecia
que com praga, sapo e tudo, ia ser campeão e não era, não havia jeito de ser. E
o pior era a dúvida. Se fosse a praga, o Vasco teria de esperar doze anos para
ser campeão. Mas a praga começava a contar de 37, quando Arubinha rogara a
praga, ou de 34, quando o Vasco fora campeão pela última vez?
O Vasco até se esqueceu, e de
propósito, do campeonato de 36, que ganhou fora da Liga Carioca, onde jogavam
Fluminense, Flamengo e América. E a Federação Metropolitana, que tinha o Vasco,
o Botafogo, o Bangu e o São Cristóvão, era a entidade oficial.
Mas se fosse contar com o
campeonato de 36, o da Federação Metropolitana, o Vasco teria de esperar mais,
talvez só fosse campeão em 48. Por isso, todo vascaíno torceu para que a praga
vigorasse a partir de 34. O Vasco só voltou a ser campeão em 45, onze anos
depois.
Há sempre um desconto nessas
pragas. O Botafogo sofreu por ter dado no Mangueira de 24 x 0. Mas não teve que
esperar 24 anos para ser campeão de novo: esperou apenas vinte anos. Quer dizer
que, se tivesse dado de quatro, nada lhe teria acontecido.
(Crônica tirada de “As Cem Melhores Crônicas Brasileiras” - Organização de Joaquim Ferreira dos Santos)
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