O
ABECEDÁRIO DE GILLES
DELEUZE
O Abecedário de
Gilles Deleuze é uma série de entrevistas, feita por Claire Parnet, foi filmada
nos anos 1988-1989.
Como diz Deleuze, em sua primeira intervenção, o acordo era
de que o filme só seria apresentado após sua morte.
O filme acabou sendo apresentado, entretanto, com o
assentimento de Deleuze, entre novembro de 1994 e maio de 1995, no canal
(franco-alemão) de TV Arte.
Deleuze morreu em 4 de novembro de 1995.
A primeira intervenção de Claire Parnet foi feita na ocasião
da apresentação (1994-1995), enquanto a primeira intervenção de Deleuze é da
época da filmagem (1988-1989).
Abecedário Deleuze -
Letra G (Gauche – Esquerda)
Abecedário Deleuze -
P de Professor (Parte 1)
Abecedário Deleuze -
Letra A (Animal)
Abecedário Deleuze -
Letra B (Beber)
Abecedário Deleuze -
Letra C (Cultura)
Abecedário Deleuze -
Letra D (Desejo)
Claire Parnet: Então, vou perguntar de outra forma. Entre seu
civismo de homem de esquerda e seu devir-revolucionário, como você faz? O que é
ser de esquerda para você?
Gilles Deleuze: Vou lhe dizer. Acho que não existe governo de
esquerda. Não se espantem com isso. O governo francês, que deveria ser de
esquerda, não é um governo de esquerda.
Não é que não existam diferenças
nos governos. O que pode existir é um governo favorável a algumas exigências da
esquerda. Mas não existe governo de esquerda, pois a esquerda não tem nada a
ver com governo. Se me pedissem para definir o que é ser de esquerda ou definir
a esquerda, eu o faria de duas formas.
Primeiro, é uma questão de
percepção. A questão de percepção é a seguinte: o que é não ser de esquerda?
Não ser de esquerda é como um
endereço postal.
Parte-se primeiro de si próprio,
depois vem a rua em que se está, depois a cidade, o país, os outros países e,
assim, cada vez mais longe. Começa-se por si mesmo e, na medida em que se é
privilegiado, em que se vive em um país rico, costuma-se pensar em como fazer
para que esta situação perdure. Sabe-se que há perigos, que isso não vai durar
e que é muita loucura.
Como fazer para que isso dure? As
pessoas pensam: "Os chineses estão longe, mas como fazer para que a Europa
dure ainda mais?" E ser de esquerda é o contrário. É perceber... Dizem que
os japoneses percebem assim. Não vêem como nós. Percebem de outra forma.
Primeiro, eles percebem o contorno. Começam pelo mundo, depois, o continente...
europeu, por exemplo... depois a França, até chegarmos à Rue de Bizerte e a
mim. É um fenômeno de percepção. Primeiro, percebe-se o horizonte.
Claire Parnet: Mas os japoneses não são um povo de esquerda...
Gilles Deleuze: Mas isso não importa. Estão à esquerda em seu
endereço postal. Estão à esquerda. Primeiro, vê-se o horizonte e sabe-se que
não pode durar, não é possível que milhares de pessoas morram de fome. Isso não
pode mais durar.
Não é possível esta injustiça
absoluta. Não em nome da moral, mas em nome da própria percepção. Ser de
esquerda é começar pela ponta. Começar pela ponta e considerar que estes
problemas devem ser resolvidos.
Não é simplesmente achar que a
natalidade deve ser reduzida, pois é uma maneira de preservar os privilégios
europeus.
Deve-se encontrar os arranjos, os
agenciamentos mundiais que farão com que o Terceiro Mundo... Ser de esquerda é
saber que os problemas do Terceiro Mundo estão mais próximos de nós do que os
de nosso bairro. É de fato uma questão de percepção. Não tem nada a ver com a
boa alma. Para mim, ser de esquerda é isso. E, segundo, ser de esquerda é ser,
ou melhor, é devir-minoria, pois é sempre uma questão de devir.
Não parar de devir-minoritário. A
esquerda nunca é maioria enquanto esquerda por uma razão muito simples: a
maioria é algo que supõe - até quando se vota, não se trata apenas da maior
quantidade que vota em favor de determinada coisa - a existência de um padrão.
No Ocidente, o padrão de qualquer maioria é: homem, adulto, macho, cidadão.
Ezra Pound e Joyce disseram coisas assim. O padrão é esse. Portanto, irá obter
a maioria aquele que, em determinado momento, realizar este padrão. Ou seja, a
imagem sensata do homem adulto, macho, cidadão. Mas posso dizer que a maioria
nunca é ninguém. É um padrão vazio.
Só que muitas pessoas se
reconhecem neste padrão vazio. Mas, em si, o padrão é vazio. O homem macho,
etc. As mulheres vão contar e intervir nesta maioria ou em minorias secundárias
a partir de seu grupo relacionado a este padrão. Mas, ao lado disso, o que há?
Há todos os devires que são minoria. As mulheres não adquiriram o ser mulher
por natureza.
Elas têm um devir-mulher. Se elas
têm um devir mulher, os homens também o têm. Falamos do devir-animal. As
crianças também têm um devir-criança. Não são crianças por natureza. Todos os
devires são minoritários.
Claire Parnet: Só os homens não têm devir homem.
Gilles Deleuze: Não, pois é um padrão majoritário. É vazio. O homem
macho, adulto não tem devir. Pode devir mulher e vira minoria. A esquerda é o
conjunto dos processos de devir minoritário. Eu afirmo: a maioria é ninguém e a
minoria é todo mundo. Ser de esquerda é isso: saber que a minoria é todo mundo
e que é aí que acontece o fenômeno do devir. É por isso que todos os pensadores
tiveram dúvidas em relação à democracia, dúvidas sobre o que chamamos de
eleições. Mas são coisas bem conhecidas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário