O fim de uma ilusão
(texto de Yoani Sánchez em 15.02.19, publicado na Revista
Crusoé)
Os cubanos sonharam alto
com o dinheiro brasileiro destinado à ilha na era PT, mas a esperança virou pó.
Era mais ideologia do que pragmatismo.
Um enorme guindaste carregando um
contêiner encheu as telas das televisões de milhões de cubanos em janeiro de
2014, durante a inauguração da primeira parte da Zona Especial de
Desenvolvimento de Mariel, a oeste de Havana. Na foto oficial, a presidente
brasileira Dilma Rousseff sorriu ao lado de Raúl Castro. Cinco anos depois, o
porto não tirou a ilha da crise econômica e a ex-presidente brasileira é um
cadáver político.
Mariel, a zona costeira por onde, em
1980, dezenas de milhares de cubanos, cansados do modelo comunista, partiram
para a Flórida, se tornou o elefante branco do castrismo na última década.
Todas as esperanças do país foram colocadas naquela faixa do litoral onde o
apoio do Partido dos Trabalhadores (PT)
ajudou a financiar a última obra faraônica de uma revolução decadente.
A construção de um “empório comercial”
chegou pelas mãos da Odebrecht, o conglomerado brasileiro que, logo após essa
inauguração, estaria no centro de um enorme escândalo que respingou em vários
governos da América Latina, em numerosos partidos políticos e em centenas de
autoridades.
No entanto, o maior obstáculo para o
desenvolvimento de Mariel não foi a origem obscura de suas finanças ou a saída
do Palácio do Planalto de seus principais benfeitores, mas o fato de ter sido
concebido para brincar com o capitalismo em um país excessivamente estatizado e
governado por um grupo de octogenários que desconfia do mercado.
Quando Rousseff e Castro cortaram a fita
para deixar aberta a primeira parte do terminal de contêineres de Mariel, eles
também estavam enviando uma mensagem. Aqueles eram os tempos em que, na foto de
família dos mandatários americanos, prevaleciam os rostos dos representantes do
socialismo do século XXI. Uma irmandade de camaradas que se ajudavam nos fóruns
internacionais e escondiam –de maneira recíproca– seus excessos autoritários.
Assim, o porto cubano, financiado com um
empréstimo do Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), não apenas foi parte de uma
estratégia de solidariedade com a Praça da Revolução, em Havana, para aliviar
sua crônica incapacidade de produzir riquezas, mas também tinha uma intenção
ideológica de viabilizar um modelo que, em meio século, já tinha dado provas
suficientes de seu fracasso.
Assim como o subsídio da União Soviética
uma vez apoiou os delírios de Fidel Castro e, mais tarde, o patrocínio de Hugo
Chávez permitiu que Fidel passasse o poder para seu irmão mais novo, Raúl,
Brasília também quis apoiar seu parceiro político e manter viva a “chama” da
revolução cubana. Era uma tarefa quase arqueológica, um esforço para fazer
parecer que um regime incapaz de sobreviver sem recursos externos ainda estava
respirando com a ajuda de seus próprios pulmões.
Em janeiro de 2014, ainda faltavam
vários meses para que se anunciasse o degelo diplomático entre Cuba e os
Estados Unidos. Mas, sem dúvida, todo o porto de Mariel foi projetado para
acomodar navios que, fazendo escala na ilha, terminariam em portos dos Estados
Unidos e vice-versa. Após cinco anos, o degelo voltou a esfriar pela
incapacidade de Havana em dar passos para a abertura na velocidade das medidas
de Barack Obama e pela chegada de Donald Trump à presidência.
Tampouco o PT continua no poder no
Brasil e pouco resta daquele retrato de família da região onde se podiam ver
rostos como os de Rafael Correa (ex-presidente
do Equador), da própria Dilma Rousseff ou de Michelle Bachelet (ex-presidente chilena). Daqueles “tempos dourados”, Cuba ficou com uma
dívida que mal consegue pagar ao seu ex-sócio sul-americano e um porto que está
se convertendo em um parque temático do passado, que não consegue atrair navios
carregados de mercadorias ou investidores dispostos a se instalar em sua zona
comercial.
Mas a retirada brasileira da ilha não
ficou só nisso. No final de 2018, uma disputa diplomática enfurecida entre o
regime de Miguel Díaz-Canel e o então presidente brasileiro Jair Bolsonaro
terminou com a saída prematura de milhares de profissionais de saúde cubanos do
programa Mais Médicos.
Bolsonaro acusou Havana de praticar
escravidão moderna com seus médicos no exterior e exigiu que eles recebessem o
valor integral de seu salário, porque o governo cubano ficava com 75% dos 3.300
dólares (cerca de 11 mil reais) que o Brasil dava para cada um. Ele também
exigiu que os médicos passassem por provas para revalidar seus títulos e para
demonstrar seus conhecimentos. O Ministério da Saúde Pública da ilha não
aceitou e bateu a porta.
Por trás das manchetes e do confronto
entre as duas administrações, ficaram no esquecimento as pequenas histórias de
milhares de cubanos que, agora, tentam reconstruir suas esperanças de melhorar
suas vidas e as de seus familiares. Muitos deles tinham chegado ao Brasil não
apenas movidos pelo sentido humanitário, inerente a todo o pessoal de saúde,
mas também impulsionados por suas necessidades econômicas.
Em Cuba, os doutores são os
profissionais mais bem remunerados. No entanto, o salário mensal deles não
excede o equivalente a 60 dólares. Não é incomum ver um médico com sapatos
destruídos, que não conseguiu tomar o café da manhã porque não tem recursos
para fazê-lo ou que precisa esperar um ônibus público por duas horas antes de
chegar a uma sala cirúrgica para realizar uma cirurgia cerebral complicada.
As missões oficiais no exterior sempre
foram uma oportunidade para esses médicos conseguirem mais recursos
financeiros, apesar da altíssima porcentagem de seus salários que fica com as
autoridades. Mas, sobretudo, essas viagens constituem um momento propício para
estabelecer relações humanas que permitam a eles se casar, forjar amizades ou
contatos que possam significar ficar em outro país ou voltar mais tarde de
forma privada, com dinheiro próprio.
Com a saída vertiginosa de Cuba do Mais
Médicos, os sonhos desses médicos foram feitos em pedaços. O mesmo aconteceu
com o porto de Mariel, que tinha enchido de ilusões muitos habitantes desse
pequeno povoado na zona do litoral oeste de Havana. Também foram destruídos os
sonhos de muitos cubanos que, por décadas, esperam que a economia da ilha se
recupere algum dia para viver mais dignamente e para não ver seus filhos
partirem para o exílio.
Por tudo isso, agora mesmo, dizer
“Brasil” em Cuba é mencionar um sonho, o reflexo de algo que poderia ter sido e
que não foi. Mas também é a evidência do fracasso de uma estratégia e da caída
em desgraça de um apoio que teve mais ideologia do que pragmatismo.
A jornalista cubana Yoani
Sánchez, que escreveu este texto especialmente para Crusoé, vive em Havana e dirige o site 14ymedio.
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