Cony, 86: "No Brasil, já não há castração. Mas há impotência"
ALVARO COSTA E SILVA
MARCO AURÉLIO CANÔNICO
JOÃO PAULO CUENCA
ILUSTRAÇÃO PAULO MONTEIRO
RESUMO Autor de mais de 80 livros, Carlos Heitor Cony volta à narrativa memorialística ao relançar livro sobre JK e a ditadura militar. Nesta entrevista, concedida a dois repórteres e um romancista carioca como ele, o colunista da Folha fala de livros, futebol, política e jornalismo. Leia a íntegra emfolha.com/ilustríssima
CARLOS HEITOR CONY, 86, surge na sala do seu apartamento na Lagoa andando com dificuldade. Se a distância fosse maior, usaria uma bengala; viagens, só mesmo com cadeira de rodas. Com galhardia, Cony enfrenta um câncer linfático crônico, diagnosticado em 2001. As sessões de quimioterapia enfraqueceram-lhe as pernas. A cabeça continua tinindo.
Durante duas tardes de conversas, totalizando seis horas, o escritor e colunista da Folha discute futebol e literatura, lembra amigos como Paulo Francis e Adolpho Bloch e conta como foram suas prisões durante o regime militar (1964-85) -seis no total.
Ele até se emociona ao falar de trabalhos seus que voltam às livrarias em duas novas edições -dentro de uma lista de títulos que ultrapassa os 80, entre romances, contos, crônicas, ensaios, reportagens, infantojuvenis, adaptações.
"JK e a Ditadura" [Objetiva, 240 págs., R$ 40], que reúne dois livros anteriores sob novo título, esmiúça o episódio sobre a morte do ex-presidente num desastre automobilístico, "ainda cercado de mistério", segundo o autor.
"Chaplin e outros Ensaios", previsto para outubro pela Topbooks, recupera textos de fôlego, alguns dos quais publicados no "Jornal do Brasil" no fim dos anos 1950, como uma análise do romance carioca -vertente da qual ele próprio fez parte, porém não mais.
"Depois de publicar 'Pilatos', em 1974, não tinha mais nada a fazer. Acabei fazendo, por circunstâncias do mercado. Hoje não volto mais a escrever ficção." Mas, com Cony, tudo é possível. Há mais de 50 anos, está às voltas com um romance incompleto: "Missa para o Papa Marcello". Quem sabe?
Carlos Heitor Cony - Difícil. O futebol hoje é globalizado, e já não somos o que éramos. A Espanha, pouco tempo atrás, era uma seleção inviável. Em 1950 batemos nela de 6 a 1, ao som das "Touradas em Madri", do Braguinha. Hoje ela pode ser considerada favorita.
O Brasil, mesmo em casa, não?
Falta ao Brasil um "führer". Não gosto dessa palavra, mas é a melhor para definir o que não temos. Não só um técnico, mas um "führer". Aqui não há técnico nesse estilo.
O Felipão?
Precisamos de mais, na base do nazismo mesmo. Um camarada com pulso forte em cima dos jogadores. Não vejo ninguém assim. Mano? Luxemburgo? Muricy? A Copa é um torneio medieval. E as seleções de fora, hoje, têm nível de combate superior ao nosso.
Você é a favor do novo Maracanã?
Os estádios modernos não são mais em forma de prato, como o Maracanã e o Morumbi. Essa reforma era necessária para deixá-lo em forma de xícara, que favorece a visão. Além disso, os equipamentos estavam ultrapassados, sem condições para o Mundial, com sua complicada estrutura de comunicações. Acho que o problema maior continua sendo de acesso, de como chegar ao estádio.
O sr. acompanhou a polêmica da construção do Maracanã?
Ary Barroso era vereador. Também Carlos Lacerda, que queria o estádio em Jacarepaguá, mais ou menos onde hoje fica o Riocentro.
Foi uma briga terrível. Mas o Partido Comunista, que na época havia eleito 18 vereadores, entre eles Agildo Barata e Aparício Torelly, o Barão de Itararé, fechou com a proposta do Ary: fazer onde funcionava o Derby Club. O "Jornal dos Sports", com Mário Filho à frente, também fez campanha.
O sr. conheceu Mário Filho antes de conhecer Nelson Rodrigues?
Antes eu era só amigo do Mário. E Nelson, com ciúme, tinha uma pinimba comigo. Quando o Marcito (Márcio Moreira Alves) foi candidato a deputado em 1966, emprestei meu carro, um Simca Chambord, para a campanha. O automóvel foi apreendido pelo Dops, com material de propaganda, considerado subversivo. A notícia saiu nos jornais e Mário me telefonou, preocupado. Naquele dia ele passou mal e à noite morreu.
Fui ao enterro e Nelson me viu chorando, abraçado com Lúcia, cunhada dele. Tudo mudou a partir daí. Ele disse que havia perdido um irmão, mas ganhado outro.
Ficaram amigos?
No seleto grupo que circundava o Nelson, com José Lino Grünewald, Hans Henningsen, o Marinheiro Sueco, Pedro do Coutto, Salim Simão, imperava a certeza de que o personagem Palhares, o canalha, aquele que não respeita nem as cunhadas, era eu.
Sempre nos víamos num botequim da rua Tenente Possolo, perto do "Jornal dos Sports". O Nelson pedia uma fatia de queijo do reino, mas havia de ser uma fatia diáfana. Se não via através do queijo o outro lado, não comia.
O sr. vê ligação entre a sua obra e a dele?
Paulo Francis publicou um artigo em que notava essa relação, mas fazendo justiça ao Nelson. Escreveu que eu não tinha os lampejos dele. Mas, para Paulo, ambos percebíamos as peculiaridades do nosso subdesenvolvimento de costumes e maneiras.
Mas Mário Filho influenciou mais seu estilo. Ou não?
Depois dele, nunca mais usei ponto e vírgula. Quando saí do seminário, meus modelos eram Padre Antônio Vieira e Humberto de Campos. Com a leitura do Mário, ganhei naturalidade.
Quando ele morreu [1966], o sr. já era colunista político famoso, não?
Veja bem: até 1964, eu não escrevia sobre política. Fazia editoriais no "Correio da Manhã" abordando questões ligadas aos serviços da cidade, racionamento de luz e água. Mesmo hoje não dou muita bola para política. Só sei o nome de dois ou três ministros. Volta e meia, comento o assunto do momento. Aproveito o mensalão, por exemplo, para citar Swift.
Qual foi sua reação contra o movimento de 1964?
Paulo Francis disse que entrei na arena com a fúria de um miúra. Mas a primeira crônica que fiz, em 2 de abril de 1964, não era política. Foi um fato que presenciei na véspera, com Drummond, colega no "Correio da Manhã" e vizinho no Posto 6, em Copacabana.
Eu tinha sido operado de apendicite, estava de resguardo. A área de serviço do meu apartamento dava para a dele, que me convidou a descer. Estava chovendo, e ele disse que levaria guarda-chuva. Vimos o general César Montana dar um tapa na cara do sentinela e, com o gesto, destruir a resistência.
Em seguida um oficial da Marinha atirou para o alto na rua Rainha Elizabeth. Um pau de arara, de short, sem camisa, costas molhadas da chuva, provavelmente operário, gritou: "Viva Brizola!". O oficial e outras pessoas o derrubaram e o chutaram sem dó. Voltamos eu e Drummond em silêncio. Escrevi a crônica sem comentário político, apenas narrando o que vi.
O sr. fazia ideia de como a imprensa iria se posicionar?
Com exceção do meu texto, "Da Salvação da Pátria", quase todos os jornais, o "JB", "O Globo" nem se fala, o "Última Hora" timidamente, saíram no dia seguinte com elogios à chamada Revolução.
Ao chegar à Redação, ouvi Niomar Muniz, dona do "Correio da Manhã", me perguntar de passagem: "Você sabe o que fez?". O pessoal que trabalhava comigo no Petit Trianon, a sala dos editorialistas, estava arredio. Mas recebi um telefonema do Drummond, que só disse isso: "Um abraço".
O sr. não recuou?
Não me intimidei. Um dos textos mais agressivos, e talvez também um dos mais ingênuos, levou o título de "Cipós para Todos", ao fim do qual escrevi que qualquer violência contra mim teria um único responsável: o general Costa e Silva, do Ministério da Guerra.
Meus amigos quase todos estavam presos ou abrigados em embaixadas. Outros mudaram de lado, como Hélio Fernandes, que passou a ser o dedo-duro principal. De modo geral, a maioria ficou a favor do golpe. O próprio Lula desfilou numa daquelas marchas da família, em São Paulo. Não há foto para provar, mas ele desfilou.
Tentaram sequestrar suas filhas?
Dois camaradas se apresentaram no colégio delas, o Externato Atlântico, em Copacabana, dizendo que eram meus amigos e iriam tomar conta das meninas. Uma professora desconfiou, pediu documentos. Eles colocaram as duas dentro de um carro, cuja placa a professora conseguiu anotar.
Um deles, antes de soltá-las algumas quadras adiante, chegou a dizer para a mais velha, de 12 anos: "Vamos tirar hoje seu 'cabaço'". Eram dois oficiais da Auditoria da Marinha, em trajes civis.
O sr. acabou sendo processado?
Antes chegaram a anunciar minha morte. Um sujeito entrou no "Correio da Manhã" dizendo que eu havia sido assassinado. O que houve foi que, em agosto de 1964, fui processado pelo Costa e Silva. Disse que tomou a medida porque não conseguia mais conter a pressão dos que queriam me matar.
Como ainda havia ilhas de legalidade, pude contratar um advogado, Nelson Hungria, que pediu um habeas corpus no Supremo Tribunal Federal, descaracterizando a Lei de Segurança Nacional e fazendo o processo correr na Lei de Imprensa, que previa o mesmo crime de que eu era acusado, criar animosidade entre civis e militares.
Se fosse condenado, pegaria 30 anos. O processo passou para a esfera da 12ª Vara Criminal. Fui intimado a comparecer ao Ministério da Guerra no dia em que Costa e Silva prestou depoimento. Foi um encontro cordial, diga-se. Depuseram a meu favor Austregésilo de Ataíde, Alceu Amoroso Lima e Drummond. Acabei condenado a três meses, em 1965, mas então já estava preso por outro motivo.
Qual?
Ter participado de um protesto diante do hotel Glória, quando ali se reunia uma Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos. Faziam parte do nosso grupo, chamado de "Os Oito do Glória", Antonio Callado, Márcio Moreira Alves, Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade, Mario Carneiro, Flávio Rangel e o embaixador Jayme Azevedo Rodrigues.
Havia um nono integrante, o poeta Thiago de Mello, que não foi preso na ocasião mas apresentou-se às autoridades depois. O PC prometera levar 5.000 operários, mas só surgiram cinco gatos pingados. Não houve violência, só um soldado me apalpou e, como eu tinha um cachimbo no bolso, gritou: "Esse camarada está armado!".
Quando estávamos saindo, na viatura, Flávio disse: "Olha o Paulo Francis!". Ele estava na calçada, olhando. Ao chegarmos ao Batalhão da Guarda, em São Cristóvão, eu mesmo vi o Paulo atrás de uma árvore. Na hora, me lembrei de São Pedro, que negou Cristo três vezes.
Houve outras prisões?
Ao todo, foram seis. Fui preso quando saiu o AI-5, em dezembro de 1968, junto com o [jornalista] Joel Silveira. Fiquei numa espécie de Hilton, a cadeia do Batalhão da Guarda: sala enorme, dois banheiros, comida de razoável para boa. Na noite de Natal, ganhamos uma cesta com nozes, amêndoas, avelãs, castanhas, frutas secas.
Quando saí, o comandante me perguntou se tinha alguma queixa. Respondi que havia estranhado o tratamento cinco estrelas. Tratar o Joel com tapete vermelho eu entendia, ele era um herói e um patrimônio da Força Expedicionária Brasileira. Mas a mim? O oficial disse que a deferência havia sido uma ordem do Costa e Silva.
Quando o sr. deixou o "Correio da Manhã'?
Antes do AI-2, em 1965, estava sem assunto e fiz um texto imaginando como seria o decreto: "Artigo primeiro: os Estados Unidos do Brasil passam a denominar-se Brasil dos Estados Unidos". Acontece que, na véspera, houve um pedido para que jornalistas maneirassem críticas em relação aos EUA. Otto Maria Carpeaux, assim como muitos de nós, via o golpe como mais desdobramento da Guerra Fria.
Quem de fato mandava no Brasil era o embaixador [dos EUA] Lincoln Gordon, sendo o Castello Branco uma espécie de Pôncio Pilatos, governador de colônia.
Meu artigo saiu, e o Antero, contínuo do jornal, me contou quando cheguei à Redação: "Está uma briga danada entre Callado e dona Niomar. Por sua causa'. Fiz uma carta pedindo demissão e mandei o Antero entregar ao Callado, redator-chefe do "Correio". Em solidariedade, ele também se demitiu. Logo arrumou emprego na Enciclopédia Barsa. Eu não...
Como o sr. acabou indo trabalhar com Adolpho Bloch?
Encontrei-o no Leme, fazendo pesquisa informal numa banca, para saber quantos exemplares de "Manchete" ou "Fatos e Fotos" tinham sido vendidos. Ele me falou para aparecer no prédio novo de sua editora, na rua do Russel, tinha trabalho para me oferecer.
Era o projeto das memórias do Juscelino Kubitschek. Havia cerca de 3.000 páginas escritas, e ele precisava de quem editasse o material. Me ofereceu um salário igual ao do principal redator da "Manchete", Raimundo Magalhães Jr. Aceitei. Dali a uns dias encontrei com JK pela primeira vez.
Quanto tempo durou esse contato?
Desde 1969 até a morte dele, em 1976. Foi um convívio quase diário. Trabalhamos muito, mas também saíamos para bater papo. Ele não gostava de dormir cedo, íamos a São Conrado comer camarão. Para não dizer que ficamos amigos, fomos bons companheiros.
Como era o Juscelino nessa época?
Ele estava em crise e, às vezes, caía em depressão braba. Tinha sofrido com o desquite da filha, Márcia. Estava sem emprego, após ter vendido uma financeira que administrava com o genro.
Houve também o problema de saúde, Adolpho bancou as despesas de um tratamento de próstata nos EUA, durante o qual ele me contou que pensou em se matar.
E havia as brigas com a mulher, que ficou sabendo que ele havia ido a Paris com a amante, Lúcia. A situação ficou tão complicada que ele tinha de dormir no corredor do prédio, pois dona Sarah não o deixava entrar. Para fugir do escândalo, passou a morar no prédio da "Manchete", onde tinha uma suíte, com piscina e tudo. Depois que JK morreu, herdei esse espaço.
Os livros saíram sem problemas?
Saíram quatro livros, sendo três dedicados à sua autobiografia: "A Experiência da Humildade", "A Escalada Política" e "50 Anos em 5", englobados sob o título geral de "Meu Caminho para Brasília".
Há um quarto livro, "Por que Construí Brasília", que é, em parte, a condensação dos anteriores. Em vida, Juscelino assistiu ao lançamento do primeiro e do último volumes. Os demais seriam publicados depois da morte dele.
Inclusive aquele que o sr. assinou e está relançando agora?
Chegamos a preparar esboços para um novo volume, "Mil Dias de Exílio", referente aos três anos em que ele fora obrigado a viver no exterior. O título mudou para "JK: Memorial do Exílio". Saiu em 1982, assinado só por mim, fechando o ciclo das memórias.
O novo é "JK e a Ditadura". Acrescentei uma parte que esmiúça sua morte num desastre de automóvel cercado de mistérios. Todas as hipóteses de acidente ou atentado são levantadas. Os indícios são maiores que qualquer prova cabal que responsabilize o regime militar pela eliminação dele. Mas vale lembrar que, em oito meses, morreram Jango Goulart, Carlos Lacerda e JK.
A morte de JK não deve ser investigada pela Comissão da Verdade?
Acho que não há interesse. A menos que apareça um fato novo e relevante. A Comissão da Verdade, se funcionar direito, só vai pegar bagrinhos: oficiais menores, chefes de polícia, detetives.
O sr. lança também "Chaplin e outros Ensaios". Há material inédito?
Não. Tudo já publicado, mas alguns havia muito tempo fora de circulação. Há textos da época do "Suplemento Dominical" do "JB", como os ensaios sobre Charles Chaplin ou o romance carioca.
Neste, analiso Manuel Antônio de Almeida, Machado de Assis e Lima Barreto. Não botei outros autores que escreveram sobre o Rio, caso de Aluísio de Azevedo, em "O Cortiço", ou de Raul Pompeia, em "O Ateneu", pois não eram cariocas no espírito. Marques Rebelo chegou perto, mas não conseguiu.
No restante do livro, que inclui material da "Manchete", homenageio Goethe, Guimarães Rosa, Victor Hugo, Suetônio e outros.
O "Pasquim" o convidou a ser colaborador na mesma época em que o sr. entrou para a "Manchete"?
Nos três ou quatro primeiros números do "Pasquim", havia a chamada: "Na próxima edição, Cony". Não me animei. Disse ao Jaguar que não fazia sentido gastar meus neurônios para falar mal do [colunista social] Ibrahim Sued ou elogiar a [atriz] Leila Diniz. Apreciava o lado político e a liberdade deles, mas não era a minha. Exílio por exílio, preferi a "Manchete".
A revista lhe deu oportunidade para exercer sua vocação de repórter?
Não tenho vocação de jornalista. O que fiz foi viajar. Cobri conflitos no Oriente Médio, eleições de papas, o casamento de Lady Di, crimes hediondos e passionais, desfiles de Carnaval, cometi milhares de crônicas. Editei revistas.
E passei 23 anos sem escrever ficção. Àquela altura, já havia publicado nove romances, era o autor que mais vendia na Civilização Brasileira. Sempre me considerei um escritor profissional, não gosto de amadores. Mas não mais sentia necessidade de escrever ficção.
O sr. escreveu para a TV Manchete?
O Adolpho ganhou a concorrência para a TV por motivos políticos. Ele era, em 1983, mais interessante para o governo que o "JB", que não tinha dinheiro nem competência. Para pôr a TV no ar, o Adolpho -que sabia ter humildade servil diante dos poderosos, se lhe interessasse-, teve ainda de pedir bênção ao Roberto Marinho.
E ele ajudou na instalação dos canais, tecnicamente, e até emprestando o Boni [então o principal executivo da Globo]. Mas com uma condição: que a futura TV Manchete atuasse apenas nas áreas de jornalismo e entretenimento, sem jamais produzir novelas. O Adolpho, a princípio, topou.
Por que rompeu o acordo?
Em briga com o governador Brizola, a Globo não quis transmitir o primeiro desfile no Sambódromo. A Manchete entrou e bateu recordes de audiência, em 1984, quando a Mangueira ganhou. O sucesso fez crescer o olho do Adolpho, que resolveu competir com a Globo, fazendo novelas. Palavra era a única coisa que o Adolpho não tinha, seu vocabulário se resumia a 500 palavras divididas por dez idiomas.
A publicação de "Pilatos", em 1974, é divisor de águas na sua trajetória?
Considero este o meu romance definitivo. Depois dele, não tinha mais nada a fazer. Acabei fazendo, por circunstâncias do mercado. Mas hoje, definitivamente, não volto mais a escrever ficção.
O sr. disse que o protagonista de "Pilatos", que caminha pelas ruas carregando sua amputação, representava o país castrado de então. A comparação continua a valer?
O homem que carregava o pênis num vidro da confeitaria Colombo, como se fosse um pêssego, era a visão daquele Brasil. Hoje, já não há castração. Mas há impotência.
Por quê?
O Brasil tem a sexta ou sétima economia do mundo, mas continua com a maior desigualdade social. A elite tem padrão de vida até superior ao do Primeiro Mundo, as classes médias ascenderam, mas ainda a padrões subdesenvolvidos, e a grande maioria da população vive na miserabilidade.
O sr. vê o Brasil com pessimismo?
Sou pessimista em relação à humanidade, não só ao Brasil. E não faço distinções de época. Há quem prefira o século 13, com suas catedrais góticas e Dante. Ou o século seguinte, com a Renascença italiana. Jamais sou otimista. Otimismo é má informação.
O sr. usou o pseudônimo de Isaías Caminha, personagem de Lima Barreto. O Brasil, em particular o Rio, mudou muito desde a época dele?
Quanto às relações de poder na imprensa, que o Lima denuncia nas "Recordações...", não mudou quase nada. Quanto ao Rio, ficou ainda mais medíocre. Panoramicamente é a cidade mais bonita do mundo, mas em close, é horrível.
O sr. percebe alguma ligação entre Lima Barreto e Swift, também um de seus autores prediletos?
Não. Aí passamos para a esfera de Machado. Falam da admiração dele pelo Sterne, mas para mim Machado é puro Swift. Ainda releio os dois. E Flaubert e Proust. Mas não releria mais Zola, cuja obra hoje perdeu a importância.
O sr. está no tempo das releituras?
Sou um homem terminal. Sofro de câncer linfático crônico há 11 anos. Faço quimioterapia uma vez por mês, resultando no enfraquecimento de minhas pernas. Ando de bengala. Para viagens, uso cadeira de rodas. Faço massagem e fisioterapia toda semana. Há 15 dias não saio de casa. E não vou à Academia Brasileira de Letras há mais de um ano. Ler, ou reler, é uma boa opção, não acha?
Ruy Castro costuma dizer que o sr. dá voltas e acaba sempre voltando às Guerras Púnicas. É verdade? Com a gente, não falou delas.
Ruy está desatualizado. Meu negócio agora é a Guerra do Peloponeso.
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