Marcos Peres indica Jorge Luis Borges
“Borges ria como um louco por dentro, por sua fina e azeitada ironia”, responde com muito bom humor, o escritor Marcos Peres.
Após Eric Novello ter citado Joe Hill; e Raphael Montes, Patricia Highsmith; convidado a indicar um autor que lhe é especial, o escritor Marcos Peres não teve dúvidas, apontou Jorge Luis Borges.
¡Buena indicación!
Marcos Peres tem 28 anos, nasceu e vive em Maringá. É formado em Direito pela Universidade Estadual de Maringá. Este ano, venceu o Prêmio Sesc de Literatura (2012/2013) na categoria romance com o livro O Evangelho Segundo Hitler, cuja trama apresenta a história de um personagem com o mesmo nome do escritor argentino Jorge Luis Borges. Neste enredo, há lugar ainda para outra personalidade histórica, Adolph Hitler. A história se passa no presente, refletindo acontecimentos da Segunda Guerra Mundial, quando o protagonista se envolveu com uma seita conspiratória.
Jorge Luis Borges (1899 – 1986) nasceu em Buenos Aires, Argentina. Sua obra é mais conhecida por seus livros de contos: Ficções e O Aleph, os quais trazem as principais temáticas do escritor argentino: sonhos, labirintos, bibliotecas, religiões e Deus. Muitos o consideram injustiçado por não ter recebido o Prêmio Nobel de Literatura, sendo que foi, sem dúvidas, um doas maiores escritores do século XX.
Na entrevista que se segue, Peres fala de cerveja; como conheceu a obra de Borges, através de uma estranha combinação; sua rivalidade com um escritor argentino seu amigo; as principais obras do maestro; entre outras coisas.
***
Então, Marcos, ouvi dizer que tem alguém com uma Camisa do Boca
Juniors e uma Quilmes na mão pra falar do indicado de hoje, é verdade?MP: É pra entrar no clima. Pra falar de um escritor hermano, é preciso pensar como um. A camisa do Boca é uma lembrança boa, já a usei na Bombonera, no meio da torcida Xeneize (como é conhecida a torcida do Boca Juniors), gritando feito um louco. Libertango, do Piazzola, está rolando solto aqui. Só espero que, no fim da entrevista, eu já não esteja “borracho”.
Como na música da banda argentina Enanitos Verdes, “Y yo estoy aqui, borracho y loco”? (risos). Falar de um cara como o Jorge Luis Borges deve ser especial para você, que até já o usou como personagem. Mas me conta, como aconteceu esta paixão borgiana? E até mesmo, por que você resolveu indicar o mais digno dos argentinos?
MP: Si, borracho y loco! (risos). É especial falar do Borges, que é um mestre, uma paixão. Mas para falar dele, para falar de como o conheci, de como esta paixão surgiu, preciso fazer um retrocesso. Quando menino, fugia dos clássicos infantis, não me interessava muito pelo Monteiro Lobato. No entanto, fascinava-me os gibis da Walt Disney. Desde que me conheço por gente, li gibis do Pato Donald e do Mickey, as histórias, as fantasias, as aventuras martelavam-me a cabeça e me transportavam para universos repletos de magia. Um destes gibis foi marcante: era uma história do Tio Patinhas e do Pato Donald que contava uma adaptação de um livro italiano muito famoso. O livro famoso era O Pêndulo de Foucault (Umberto Eco) e a história do gibi se chamava O Pêndulo de Ekou (provavelmente uma corruptela de Eco e Foucault), uma aventura infantil que ficou marcada em minha cabeça. Anos mais tarde, já adolescente, lembro que um anacrônico riponga colega me emprestou O Diário de um Mago, do Paulo Coelho, prometendo que aquele escrito revelaria rituais de magia e uma nova e grandiosa percepção de religiosidade. Li o Diário e o que mais me chamou atenção foi uma curta nota de rodapé, em que o autor dizia sobre uma região do Caminho de Compostela que era habitação da famosa Ordem dos Cavaleiros Templários. Na nota de rodapé, Coelho advertia sobre a riqueza da história da Ordem. Interessei-me sobre os fascinantes e controversos Templários e fui até a Biblioteca Municipal em busca de bibliografia. A Bibliotecária, que além de erudita, era minha amiga, forneceu-me um rol de livros. Dentre os nomes, um brilhou em meus olhos: O Pêndulo de Foucault, do Eco. Naquele exato momento, as lembranças da infância e das aventuras da Disney retornaram, com muita força. Li o Pêndulo, que foi minha bíblia literária, de ocultismo e de assuntos variados por um bom tempo. O Pêndulo de Foucault foi importante por muitos motivos, inclusive por me apresentar Jorge Luis Borges. O livro seguinte que li foi O Aleph. E O Aleph foi a iniciação. Foi a descoberta do palco. Foi a primeira noite de um homem. Foi quando pensei: “Porra, é isso que quero ser”.
Se esta história que narrei for invertida, ela vira uma anedota curiosa e improvável. Só conheci Borges por uma série de fatores, todos distantes do academicismo e da imposição arbitrária de cultura. Só conheci Borges pelo Tio Patinhas e pelo Paulo Coelho. Engraçado, não? Não sei se serve estritamente como uma regra geral, mas esta pequena anedota é exemplificativa de como os caminhos da literatura são tortuosos. Nada indica que um fã do Donald virará um admirador de Borges. Mostra, talvez, que mesmo a leitura despretensiosa pode dar bons frutos. Enfim, mostra a importância da leitura, como hábito, gosto e entretenimento. Ler, verbo intransitivo. O resto é consequência… Se hoje há O Evangelho segundo Hitler, preciso agradecer e muitos variados mestres, que, cada qual em seu devido tempo, foram importantes em minha formação. Bença, Vó. Bença, Borges. Bença, Tio Patinhas.
Talvez eu esteja errado, mas parece que a sombra do Borges paira sobre uma grande quantidade de literatos (soa meio místico, mas não foi a intenção). Li, por exemplo, o escritor argentino Cesar Aira dizendo que somente a geração atual dos escritores hermanos consegue escrever algo que fuja um pouco de Borges. É como se no alto de sua cegueira e timidez, Jorge Luis Borges alcançasse a todos.
Tenho a impressão que este “poder” venha do fato de ele ter sido um leitor compulsivo, não acha? Há até aquela famosa frase dele: “Que outros se orgulhem dos livros que lhes foi dado escrever; eu me orgulho daqueles que me foi dado ler “.
MP: Sim!, e é um ponto problemático este que citou, quando o Mestre ideal das letras se torna uma maldição. Há poucos dias li uma coluna do Sérgio Rodrigues sobre a chamada “má influência” (Dez escritores abrem o jogo da má influência): aquele momento em que a inspiração vira plágio, e que tudo o que se pretende fazer esbarra em um escrito já feito, já lido, já admirado. É o edipiano momento em que se deve matar este “pai literário”. Citei a coluna do Rodrigues porque um fato desta coluna me chamou a atenção: dentre os autores que abriram o jogo, alguns (Hatoum, Tezza, além de Salman Rushdie) falaram do Borges, uma referência quase unânime entre os autores incipientes nos anos 70 e 80. Este fato pode ser explicado por alguns motivos: Borges não escrevia romances, mas, sim, contos em que narrava fantasiosos romances, uma tarefa tão árdua quanto a primeira proposta. Logo, provido de sua erudição e imaginação, compôs muitos contos-ensaios sobre planetas, enciclopédias, países, personagens e livros fantasiosos. Borges, em outras palavras, escreveu o arquétipo de muitos temas; realizou, com parábolas e textos batidos em um liquidificador de filosofias, metafísicas, crenças e História, pequenos e diversificados roteiros. Ao escritor incipiente, que é admirador de Borges, é um trabalho árduo separar a admiração e o desejo de retomar estes temas e de prolongá-los. A linha que separa a inspiração e o simulacro (no caso do Borges) é tênue, parece-me. No meu específico caso, por usar o Borges como personagem, propositalmente eu utilizei um conto seu (Três versões de Judas), como tema central do Evangelho segundo Hitler. O Evangelho, propositalmente, pode ser visto como uma extensão do conto Três Versões de Judas. E, neste mesmo momento, fica suspenso o desafio: se neste romance utilizei deliberadamente Borges como argumento, em um próximo trabalho eu saberei “matar Borges”, como Rushdie fez? O tempo e Freud dirão.
Em tempo. Se Borges é o escritor argentino que precisa ser “morto” pelos novos escritores, parece-me curioso que, no Brasil, este papel seja representado pelo Rubem Fonseca. Embora exista (pela crítica literária) a afirmação que dois grandes pilares literários nacionais são Machado de Assis e Guimarães Rosa, o escritor nacional mais citado como influência dominante é o Fonseca. Este dado não me atrevo a tentar explicar. Só digo que já criei em alguns contos um policial que investiga os crimes da minha cidade, um Mandrake maringaense. Borges e Fonseca, bença, mas os mandarei para o pelotão de fuzilamento.
E que não seja “muitos anos depois” (risos).
Em Borges: linguagem e metalinguagem, Bella Jozef disse que a obra de Borges abrange o “caos que governa o mundo e o caráter de irrealidade em toda a literatura”. Me parece que no Brasil existe certa resistência à literatura fantástica por parte de certos, ditos, “literatos”. Com exceção dos contos mais regionalistas do Borges, boa parte da obra dele foi fantástica. Como você vê esta questão?
MP: Há certa resistência sim. Se avançarmos um pouco mais, só para citar um exemplo, se a literatura fantástica virar ficção científica, o tabu aumenta. “Não é serio”, torcerão os narizes peremptórios dos críticos. Em outra verve, a do romance policial, também muitos classificarão como um gênero menor. Falando de obras policiais, digo que Borges sofreu com isso e, como um admirador deste estilo, usou um artifício interessante: escreveu um livro policial em conjunto com o amigo Bioy Casares, criando um terceiro autor. Veja!, não era um mero engodo, uma pequena eclipse de dois nomes famosos da literatura argentina. Era – segundo o que foi proposto – uma fusão dos dois autores, criando um terceiro (que foi denominado Bustos Domecq), com sua personalidade, com seus gostos e com seus estilos narrativos próprios.
Sobre o gênero fantástico que me perguntou, Borges foi também refém. Olhe que curioso! É lugar comum dizer que Borges é um dos grandes injustiçados do Prêmio Nobel e que a sapiente Academia Sueca o olvidou porque considerava Borges um alienado, um lunático. Ok, há, segundo conta a tradição, a lenda que Estocolmo sempre deu preferência a escritores que incorporaram, de alguma maneira, os problemas políticos e sociais de seu tempo, de homens de letras que foram reflexos da situação política vigente. Podemos discutir o objetivo da regra, mas é uma regra, e, ora mais visível, ora mais camuflada, foi sempre o norte deste Prêmio. No entanto, o desnivelado funil do que é considerado sério e do que é embuste não só ocorre com o Nobel. Quando lançou Ficções, Borges o inscreveu em um concurso literário da cidade de Buenos Aires. E incrivelmente o perdeu! Os laureados foram livros que retratavam a história e a cultura argentina e que hoje são totalmente desconhecidos. Borges, na época, foi considerado um erudito que arrotava vantagens em contos incompreensíveis e ilegíveis. O veredicto foi dado por um júri peronista e que, por isso, concedeu a láurea para os que retratavam a tal “alma porteña”. Veja só! O grande livro do grande escritor da Argentina não ficou nem em terceiro lugar em um concurso municipal! Tal fato, se visto agora, é cômico, totalmente bizarro. Neste ponto, deixo de falar do Borges e me dirijo ao jovem que escreve e que (como eu) já teve escritos recusados, seja por uma editora, por um concurso ou por um escritor tarimbado. Se Borges não venceu um prêmio municipal com sua arma mais letal, o que mais é preciso para demonstrar que os julgamentos podem ser falaciosos? – falaciosos pela impregnação de tabus, de preferências pessoais, de subjetivismos.
E, ao falar de tabus, retorno ao princípio. O bacana da existência de tabus é a possibilidade de quebrá-los. A pergunta foi sobre a literatura fantástica e citei, apenas como exemplo, a literatura policial e a ficção científica. A inglesa Doris Lessing quebrou um tabu ao ganhar o Nobel e ter como tema recorrente a ficção científica, tema que explorou em seu maravilho romance Shikasta. E me permite fazer uma aposta aqui? O Raphael Montes ganhará muitos prêmios e quebrará muitos tabus, produzindo romances policiais de qualidade. Se estiver enganado, podem me cobrar depois. Pago um engradado de Quilmes se errar!
Aposta feita, embora num número em que se veem todas as possibilidades de ser acertado. Ou seja, você vai ter que dividir o prêmio.
Voltando ao Borges, embora a crítica o considere um escritor “profundo”, na verdade, quando se lê qualquer entrevista concedida por ele, têm-se a impressão de ter sido um tímido bem-humorado. Na verdade, um cego e tímido e bem humorado.
Por exemplo, em Siete Noches – Obras Completas, vol. III, Borges diz: “Quando penso no que eu perdi, eu pergunto: ‘Quem se conhece melhor do que o cego?”.
Como você vê este bom humor na obra do Borges? Estaria ele zombando da humanidade, ou simplesmente fazendo graça com o que via ao seu redor?
MP: Falou duas características marcantes de Borges. A timidez e o bom humor. O bom humor aplicado à literatura invariavelmente desemboca em ironias finas, recheadas de citações, parábolas e pensamentos. O bom humor, transfigurado em ironia, é elemento constante da obra de Borges. A capacidade dele de produzir bombas nucleares em duas ou três laudas só pode ser imputada ao seu bom humor. Se fosse ranzinza, ele remoeria suas ideias em tomos enormes e prolixos, certamente. Apenas para exemplificar, Três versões de Judas só foi feito porque Borges ria como um louco por dentro, por sua fina e azeitada ironia.
Já a timidez é o outro polo, que é mais visível na parte humana de Borges. “Georgie”, como era chamado por sua família, era um tímido e desajeitado inveterado. Há uma história que seu pai pretendeu fazer sua iniciação sexual em um prostíbulo suíço e que o resultado foi catastrófico. Borges sempre foi um desastre com as mulheres. Na política, talvez por ingenuidade, deu declarações equivocadas. Este mix de desajuste e de timidez, somado com seus contos frios, com seus pensamentos europeus, ajudaram a criar uma imagem de um Borges totalmente fora do espírito argentino.
Lembro de um mochilão que fiz na América do Sul. No caminho, encontramos muitos argentinos e nossa relação era respeitosa, mas não afetuosa, talvez inspirada no modo Galvão Bueno de olhar os argentinos, como se estivéssemos sempre em canchas de futebol. Tudo mudou quando conheci um escritor argentino (Juan Federico) no Peru: confessei meu amor por Borges, ele me respondeu que Borges não retrata seu povo, ou, para usar um termo em voga, que Borges não agregava nada aos argentinos. Foi inusitado um brasileiro admirar um ídolo hermano e um argentino contestar esta idolatria. Grosso modo comparando, é o que ocorre com o Messi hoje. É um gênio, ninguém contesta, mas Lionel Messi representa muito mais o lado de lá do Atlântico do que os argentinos. Ao Messi, bem como ao Borges, faltam o sangue quente, a glória e a alma portenhas. Na Argentina, o grande escritor que reflete a alma portenha é o Cortázar. Borges era capaz de aforismos, sintaxes e ironias potentes, mas nunca faria algo como o capítulo 7 de O jogo da amarelinha. Aos olhos dos argentinos, apesar de toda a sua genialidade, Borges começou a ser visto como um escritor frio, insosso. É exatamente como enxergam o Messi atualmente, que é um gênio dentro das quatro linhas, e tímido fora. É a história cumprindo mais um ciclo, como na doutrina Estoica, ou como em um dos muitos contos de Borges. É a vida imitando a literatura (ou é o calhorda do Borges prevendo tudo, dentro de sua metafísica cegueira).
Ia mesmo tocar neste ponto, de o Borges não ser idolatrado por lá, o que, embora compreensível, é até estranho diante da forma como os argentinos tratam seus “ídolos”.
MP: Este é o ponto nevrálgico da coisa. Borges sempre foi visto como um europeu. De fato, a fama tem fundamento. Seu apelido era Georgie e leu o Dom Quixote pela primeira vez em inglês, um fato inusitado para um argentino. Como disse, não há o amor, não há a presença do macho ibérico, das lutas e da paixão existente em outros expoentes do boom literário latino-americano, como em Garcia Márquez ou em Llosa. Ainda, por ser um ferrenho opoente de Perón, Borges acabou se manifestando a favor dos militares, e isso nunca foi perdoado. Como cereja do bolo, decidiu morrer na Europa. Já morto, Borges ainda era visto como polêmica. No Congresso Argentino, os peronistas decidiram que Borges deveria ser homenageado como escritor, mas não como cidadão argentino. Toda essa série de fatores fez com que se edificasse a figura de um corpo estranho em solo argentino. Há uma frase famosa que Borges é mais apreciado nas margens do Sena do que no Rio da Prata. Infelizmente, é uma afirmação que procede.
O fato dos argentinos não celebrarem o Borges é mais um dos motivos para gostarmos dele. Estou brincando, claro.
Vejo os contos do Borges “divididos” em três categorias: regionalistas, ensaístas e universais (é uma divisão minha, repito). E gostaria de pô-la à prova perguntando o que você acha disso?
Você já citou a Três versões de Judas, mas qual outro conto que lhe chama a atenção? Quais são suas histórias preferidas no universo borgiano?
MP: (risos) Sei que é uma brincadeira sadia e deve existir, faz parte do show. Quando eu e meu amigo escritor argentino conversamos, sobram farpas para todos os lados, sempre de um modo sadio. Ele me pediu sugestões de literatura brasileira, e indiquei O Grande Sertão de Veredas, com uma ressalva. “Não se preocupe se não conseguir chegar ao fim. É mais difícil do que as coisas que normalmente vocês estão acostumados”. Mas é sempre uma brincadeira sadia.
Acredita que, em meios não literários, fui questionado sobre escrever sobre um escritor argentino? Foi um questionamento sério, do tipo, porque você não escreveu sobre alguém daqui? Tinha que ser logo um argentino? Isso já é algo que extrapola a rivalidade que existe no futebol ou pelo simples fato de sermos vizinhos. É a mesma coisa que eu, bom são-paulino, afirmar não ser fã do Ayrton Senna só porque ele é corinthiano. Não faz sentido, mesmo eu não gostando do Corinthians.
Voltando ao Georgie, perguntou-me quais são meus contos favoritos da obra do Maestro (um apelido que ele ganhou ao longo de sua vida). Bom, são muitos, vamos lá. Recordo a divisão que fez: o Borges regionalista, o universal e o ensaísta. Achei uma classificação inteligente, uma divisão pertinente e sagaz. Seja no regionalismo de um poema que se passa na Recoleta, seja em um conto de um alemão se justificando por ser um oficial nazista, seja em algum ensaio que relembre os postulados de Leibniz ou de Zeno, o Eleático, essa classificação é aplicada integralmente. O mais curioso é que muitos textos de Borges acabam se enquadrando em mais de uma categoria, desta classificação que expôs. Em outras palavras, as linhas que ligam o pensamento, o íntimo de Buenos Aires e o Universo, para Borges, muitas vezes eram tênues, indistintas. Direi um exemplo, porque ele se confundirá com o que acho mais precioso em Borges. A morte e a Bússola, por exemplo. Não é a toa que este conto foi eleito por Harold Bloom como o ápice do delírio Borgiano. Também não é a toa que, neste pequeno conto, há consignado justamente o ensaio (e o pensador delirante atrás do ensaio), o regional exemplificado em uma Buenos Aires onírica, e o universal, demonstrado por personagens, ruas e locais com nomes claramente europeus, além da influência do judaísmo e dos ensinamentos da Cabala. Em suma, um detetive chamado Eric Lonnrot acaba enganado por seu arqui-inimigo Red Scharlach, em uma mansão abandonada chamada Triste Le Roy. Scharlach, o dândi, engana Lonnrot propondo uma série de crimes ligados ao judaísmo, e que podem ser explicados por conhecimentos rabínicos. Scharlach, que sabe que Lonnrot se julga um pensador (como Dupin) cria uma série de eventos, necessários para que Lonnrot, munido de um mapa e uma bússola, preveja a o próximo crime. O termo final, no entanto, é uma cilada (Bino). No meio desta alucinante sequencia, há referência a Pogroms, irlandeses, ruas fantasiosas, arlequins embriagados, losangos coloridos, e bandoleiros que vivem ao Norte e que manejam como ninguém o Punhal. Esta é uma referência regional, uma referência aos antigos gaúchos que se valiam de Punhais e que desprezavam os revólveres, uma referência regionalista. Há, portanto, a construção de uma cidade imaginária, que é Buenos Aires, mas que poderia ser Genebra, Londres e até minha modesta Maringá. No fim, Lonnrot olha Scharlach e os dois sentem uma imprevisível tristeza. Lonnrot diz que o labirinto criado por Scharlach é deselegante e indica um labirinto feito em uma única reta, sempre dividida ao meio, sempre criando um ponto novo, assim até o infinito. É a evocação ao Paradoxo de Zeno, que Borges adora e que utilizou em diversos escritos (Avatares da tartaruga, A Perpétua Corrida de Aquiles e da Tartaruga). Aí estão o universal, o regional e a exposição prática de um pensamento filosófico. É Borges em toda a sua potência, no auge de sua genialidade, destilando ironia e veneno, Borges on the rocks, pronto pra ser degustado, saúde a todos. O final ainda contém um trecho lindo, uma música que Scharlach, o vilão, diz, para Lonnrot, o detetive enganado. Na próxima vez, prometo te matar neste labirinto invisível, diz o vilão ao quase-morto. Pela construção criada, muitos críticos viram neste fabuloso conto a construção de um arquétipo. Scharlach nada mais é que uma projeção de Lonnrot. Sob esta ótica, o final é ainda mais miraculoso: se são arquétipos, a morte de um pelo outro só pode ser explicada como um suicídio. Um suicídio na regional Buenos Aires, de universais protagonistas, edificada sob construções idealistas de que o espaço, bem como o tempo são infinitamente divisíveis. Saúde, um brinde de Quilmes! O tema do duplo e do metafísico suicídio realizado por arquétipos também é encontrado no conto Os Teólogos, que também é maravilhoso.
A Biblioteca de Babel e a Loteria de Babilônia também são lindos. Os dois textos se aproximam de parábolas, este sobre o livre-arbítrio e a possibilidade de escolha, aquele sobre a Reprodução do Universo em escritos. Encanta-me, também, como Borges colocou o homem em xeque com suas próprias escolhas: em Deutsche Réquiem, um alemão justifica as escolhas que fez – como oficial nazista – com o uso do impreterível destino. Em determinado momento, diz que tudo o que fazemos já foi prefigurado antes de nosso nascimento. Diz que há uma escolha pretérita, já definida. Olhe que maravilha este excerto: “toda negligência é deliberada, todo casual encontro, uma hora marcada, toda humilhação, uma penitência, todo fracasso, uma misteriosa vitória, toda morte, um suicídio. Não há consolo mais hábil que o pensamento de que escolhemos nossas desgraças; essa teleologia individual nos revela uma ordem secreta e prodigiosamente nos confunde com a divindade”. Pelas condições do alemão, o pensamento soa como um escapista modo de viver, imputando o que fez ao imperioso destino. Já no famoso Jardim das Veredas que se Bifurcam, Borges fala do acaso. É um conto sobre a possibilidade de escolha. No entanto, é um conto que tenta mostrar não só a vereda escolhida, mas todas as outras descartadas, caóticos e justapostos mundos feitos de escolhas distintas. “O tempo se bifurca perpetuamente para vários futuros. Em um deles sou seu inimigo” é uma frase maravilhosa, que as vezes me pego a repetir, em solilóquio, como um tolo. É uma frase que me diz muita coisa. Diz sobre a responsabilidade da escolha e de como o futuro é parte integrante do que escolhemos hoje. É uma frase que me ajuda a manter vivo, como muitos outros petardos literários.
Outro tema que gosto em Borges é a do Tempo Circular, ou Tempo Cíclico, que o Maestro pegou emprestado de Nietzsche. “Tudo que foi um dia voltará a ser”, tema presente em Deutsche Requiem, O Tempo Circular, A Doutrina dos Ciclos e em Os Teólogos.
Dos ensaios (marcados mais pela filosofia do que por um enredo literário), um que me marcou muito foi: Uma Nova refutação do tempo, que é um compilado de pensamentos e pensadores e pode ser lido como um esforço admirável de um sujeito que possivelmente se remoia com o imutável passado. Deste ensaio, hermético e pesado, guardo outra frase que sempre repito e que me parece uma metralhadora, de tão potente e letal: “Nem a vingança, nem o perdão, nem as prisões, nem sequer o esquecimento podem modificar o invulnerável passado”. Foda, não?
Mas encerrarei minhas citações com a minha preferida, que é de uma poesia que se chama Posse do ontem. Em suma, é um poema que diz que só conseguimos enxergar o verdadeiro valor das coisas quando as perdemos. O melhor aforismo de Borges, de tantos que sua mente insana produziu, na minha humilde opinião, é este: “Não há outros paraísos que não sejam paraísos perdidos”. Esta frase sintetiza tomos e séculos de tantos escritores que, em reward, escreveram sobre o passado ou que almejaram buscar o tempo perdido. De lambuja, faz referência ao Paraíso Perdido, de Milton. Um dia, se me der coragem, após algumas Quilmes, tatuarei esta frase do Borges, junto com outra frase do Guimarães Rosa. Mas esta é outra estória… (risos).
Para quem ainda não leu Borges, está aí um cardápio completo. Como fã do maestro, afirmo que eu não indicaria leituras melhores.
Mas ainda precisamos falar de um tópico apenas citado, o “Borges poeta”. Outra faceta deste gênio, talvez, não tão comentada.
Só para citar um exemplo, a última estrofe do poema Xadrez parece uma extensão poética de um dos contos borgianos: “Deus move o jogador, e este, a peça./ Que deus detrás de Deus o ardil começa/ de pó e tempo e sonho e agonias?”.
O que você diria a respeito das poesias dele? Alguma particularmente marcante para você?
MP: Duas colocações foram extremamente pertinentes. A primeira, a de que a faceta do Borges poeta é menos conhecida que a do Borges ensaísta/contista. O fato se torna ainda mais inusitado se considerarmos que o período em que se propôs a fazer narrativas longas é menor que o período em que se debruçou na poesia. O jovem Borges que retornou da Europa influenciado pelos ismos europeus e que seria representante do Ultraismo, começou na poesia com o livro Fervor de Buenos Aires. Teve sucesso principalmente com Ficções e O Aleph e, depois de um hiato fazendo prosa, retorna para a poesia, uma característica que manteria até o fim de seus dias.
Outro ponto pertinente é que a poesia do maestro traduz as preocupações e os temas que laborava na prosa. Com a poesia, no entanto, estes temas ganham um colorido novo, uma percepção mais sucinta e, no entanto, mais poética, desprovida do citacionismo e dos postulados acadêmicos. Este lindo excerto que me mandou é um poema alegórico, desde o princípio, desde a escolha do tema xadrez. Neste poema, há visíveis ecos do seguinte tema: de como somos peças de um jogo de xadrez divino e, no entanto, podemos, com a escrita, com as escolhas, sermos também insuspeitas divindades, uma metáfora do ato supremo que é a criação literária. No outro lado da corda, Borges coloca a perigosa heresia (Chupa, Dan Brown!) que o Deus que conhecemos e rogamos não é o Termo final, mas também uma peça, controlada por outro deus, e que essa série se prolonga ad infinitum. No conto O Tempo e J.W. Dunne, Borges fala de um sujeito (Dunne) que pensa outro sujeito, que pensa outro sujeito, que… esta série infinita não apenas traduz infinitos Criadores e criaturas, mas também é argumento para o insano autor mostrar que há diversos tempos, que cada sujeito pensado vive em um tempo diferente, em veredas diferentes. É a alegoria de controlarmos um peão no xadrez, mas não sabermos se amanhã acordaremos envoltos em uma cegueira (branca ou negra) ou se seremos consumidos por um câncer.
Dos poemas, citarei os que me foram importantes, na construção do meu Romance: ou seja, aqueles poemas que ecoavam o tema das Três Versões de Judas. (Nas três versões, Borges mostra um Judas diferente daquele que foi imposto pela Tradição. Um Judas necessário para a realização do Episódio da Cruz, um Judas que soube que a redenção só ocorreria se alguém se dispusesse a praticar a infâmia. Enfim, uma variante do antigo pensamento que só há a percepção do bem com a demonstração do mal). Vejo ecos deste conto nos seguintes poemas: “Foi no primeiro deserto/ Dois braços atiraram uma grande pedra/ Não houve um grito. Houve sangue/ Houve pela primeira vez a morte/ Já não me lembro se foi Abel ou Caim” (Gêneses, 4,8).
“Chamavam-me Caim. Por mim o Eterno/ Sabe o sabor do fogo do inferno” (Ele; O Outro, o Mesmo).
“E nasce de uma mãe, tal como nascem/ As linhagens que em poeiras desfazem,/ E lhe será entregue este orbe inteiro,/ Ar, água, pão, manhãs, pedras e lírios,/ Porém, depois, o sangue do martírio,/O escárnio, os cravos e o madeiro” (João 1,14).
“Dei-lhe outras coisas/ Abjurei de minha honra,/ Traí os que me acreditaram seu amigo,/ Comprei consciências,/ Abominei o nome da pátria/ Resignei à infâmia” (Quinze moedas, O espião).
“Serei o rosto que entrevejo e esqueço/ Serei Judas, que aceita/ A divina missão de ser traidor” (Brownieng resolve ser poeta, A Rosa Profunda).
Mas meu preferido ainda é A Posse do Ontem. A minha frase preferida é a de que os Paraísos são os Paraísos Perdidos. Quer um detalhe curioso? Quando Borges casou com Maria Kodama, já cego, no fim da vida, uma pequena comemoração foi realizada em Genebra. Borges brindou com uma taça contendo água com gás, uma alusão ao champanhe, porque sua saúde já não permitia a extravagância do álcool. Um amigo do casal, então, leu justamente A Posse do Ontem e, no momento em que disse sobre os Paraísos Perdidos, Borges retrucou, falando que havia se equivocado e que retiraria este trecho do poema, já que encontrara um insuspeito Paraíso ao lado de Kodama (que acabou ganhando a fama de Yoko Ono da Literatura, uma persona non grata aos fãs do Maestro).
Marcos, foi simplesmente inspirador ver você falar tão apaixonadamente sobre Jorge Luis Borges – alguém que até mesmo transformou o autor em personagem (em seu romance O Evangelho Segundo Hitler, vencedor do Prêmio Sesc de Literatura 2012/2013) –, e, por isso, gostaria de saber apenas se tem algo a mais para acrescentar sobre o escritor argentino? – além, é claro, de agradecê-lo por suas respostas.
MP: O prazer é meu! Borges ainda é desconhecido de parcela dos leitores brasileiros e, por isso, falar dele é sempre um prazer. Um dos grandes elogios que recebo do meu livro é o seguinte: “Depois que li o Evangelho, fiquei com vontade de ler Borges”. Amém, eu respondo, é meu tijolinho da minha morada celeste sendo construído, um céu particular de São Borges, São Nabokov, Santo Autran Dourando, dentre tantos outros…
Falar de uma paixão é sempre gostoso, é sempre o ato do leitor admirado, tentando traduzir as maravilhas que leu. Agradeço o espaço que me foi dado, as diretrizes perspicazes desta conversa bacana e termino a conversa consignando que sou um leitor agradecido (de Borges e de tantos outros). E confirmar o status de leitor, de eterno leitor, ajuda a fazer o sangue correr em minhas veias, ajuda a me levantar da cama e saber que este louco mundo já foi tão bem traduzido por mestres e maestros, de tempos e espaços variados. Aos mestres, então, meus agradecimentos e, onde quer que estejam, da vereda, do tempo, do tabuleiro inexato de xadrez e da galáxia que habitarem, fica aqui meu humilde pedido de benção. Bença, velha guarda! Bença, Borges!
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