segunda-feira, 4 de junho de 2012

Guimarães Rosa falando sobre o boi Calundú

Trecho tirado do conto “O burrinho pedrês” do livro “Sagarana” de Guimarães Rosa, falando sobre o boi Calundú.

— Mas, e depois, a onça, Raymundão?

— A onça, o povo dizia que ela tinha vindo de longe. Onça tigre macha, das do matogrosso...
Onça bicho doido para caminhar, e que anda só de noite, campeando o que sangrar... Pois, naquela ocasião, eu estava crente que ela estava a muitas léguas de lá onde que eu estava... Pensei que andasse pelo Maquiné
— Mas, e o zebu?
— Bom, quando eu ouvi o miado, fui para perto de um angico novo, por causa que eu  estava sem arma de fogo, e onça não trepa em pau fino — se diz — que ela não tem poder de abarcar com as munhecas... Aquilo, eu pedia a Deus para mandar ela não vir do meu lado... Fiquei alegre, quando escutei melhor o miado da bicha-fera, lá por trás do tabocal...
E o Calundú cavacava o chão e bufava, com uma raiva tão medonha, que ai fiquei mais animado, por ele estar me protegendo, e até tive pena da pobre da oncinha!
— E depois? A tigre chegou no marruás?
— Perde essa moda. Zebu zebu mesmo, e marruás garrote, dos outros... Mas, ai, eu vi a canguçu, vi o vulto dela, por que era lua cheia, noite clara, já falei.
— Urrando, assanhada, Raymundão? Eu já vi uma suçuarana rompente, uma vez...
— Não é capaz. Onde foi que já se viu onça tocaiar criação desse jeito? Aquilo ela vem feito gato quando quer pegar passarinho: deitada, escorregando devagarinho, com a barriga no chão, numa maciota, só com o rabo bulindo... Os olhos que alumiam verde, que nem vagalume bagudo...
— Mas, pulou no cangote do zebu?
— Que óte! Que ú!... Você acredita que ela não teve coragem?! Naquela hora, nem o capeta não era gente de chegar no guzerá velho-de-guerra. Nem toureiro afamado, nem vaqueiro bom, Mulatinho Campista, Viriato mais Salathiel, coisa nenhuma... E, quem chegasse, era só mesmo por ter vontade de morrer suicidado sem querer...
— Ixe!
— Mas o Calundú cada vez ia ficando mais enjerizado e mais maludo, ensaiando para ficar doido, chamando a onça para o largo e xingando todo nome feio que tem. Aquilo, eu fui bobeando de espiar tanto para ele, como que nunca eu não tinha visto o zebu tão grandalhão assim! A corcunda ia até lá embaixo, no lombo, e, na volta, passava do lugar seu dela e vinha pé chapéu na testa do bichão. Cruz! E até a lua começou a alumiar o Calundú mais do que as outras coisas, por respeito...

— Eu estou quase não acreditando mais, Raymundão...

— Bom, pode ter sido também uma visão minha, não duvido nada... Mas, então foi que eu fiquei sabendo que tem também anjo-da-guarda de onça!... Você sabe que, quando a tigre arma o bote, é porque ela já olhou tudo o que tinha de olhar, e já pensou tudo o que tinha de pensar, e aí nunca que ela deixa de dar o pulo, não é? Pois, nesse dia, a canguçu de certo que imaginou mais um tiquinho, porque ela desmanchou o dela, andando de rastro para trás um pedaço bom. Depois, correu para longe, sem um miado, e foi-s’embora. Onça esperta!...

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